Crítica: A Origem (trilha sonora)

21 de abril de 2011 2 Comente Aqui!

Na década que passou, Christopher Nolan emergiu como um dos melhores diretores da nova safra hollywoodiana, levando a imprensa a considerá-lo “o Stanley Kubrick dessa geração”. Depois de surpreender o grande público com o originalíssimo Amnésia (2000), seguido do aclamado Insônia (2002), Nolan convenceu a Warner Brothers a dar um reboot na saga de Batman. E assim o fez com muita competência com Batman Begins (2005), seguido do genial Batman: Cavaleiro das Trevas (2008), um raro exemplo onde a aprovação do público e da crítica convergiu. No ano passado, Christopher Nolan apresentou A Origem, um filme de ação inteligente que nos transporta para o mundo dos sonhos, onde a mente humana constrói um universo paralelo que reflete nossos medos e desejos mais íntimos. Lembro dos comentários na época de sua estréia; ouvi muita gente saindo do cinema dizendo que tinham visto “o novo Matrix”. Faz sentido. Os efeitos especiais inovadores, as cenas de ação eletrizantes e uma trama que não subestima a inteligência do espectador (Avatar?) fazem de ambos blockbusters fora de série.

Fascinado tanto com o poder criativo da mente humana quanto à relação entre o estado de vigília e nossa vida onírica, Christopher Nolan trabalhou ao longo de dez longos anos para dar corpo ao roteiro de Inception. O diretor contou com um elenco de primeira na sua nova empreitada – a começar por Leonardo DiCaprio, que vive o papel do "extrator" Dominic Cobb, um especialista em roubar segredos do subconsciente das suas vítimas enquanto dormem. Ellen Page, a revelação de Juno (2007), está à bordo como a pupila de Cobb, Ariadne. Alguns velhos conhecidos de Nolan dão as caras – a exemplo de Michael Caine (o mordomo de Bruce Wayne, o Alfred dos Batmans) e Cillian Murphy (o “Espantalho” de Batman Begins).

O roteiro é bem orquestrado e encadeiado por uma série de idéias inspiradas. Uma delas foi o cuidado que Christopher Nolan teve foi incorporar características universais dos sonhos: o clima emocionalmente carregado do mundo onírico, o fato de nunca morrermos durante um sonho ou até como exagerar no pileque faz a gente sonhar com chuva (lembram do químico Yusuf, no avião?). No filme, Christopher Nolan aproveitou para explorar a arte do holandês M.C. Escher (1898-1972), famoso por suas litografias envolvendo paradoxos geométricos. Uma de suas gravuras mais conhecidas é Klimmen em Dalen (1960), baseada na Escada de Penrose, uma "escada infinita" de 2 dimensões que é impossível de ser projetada no mundo real. Ela aparece no filme quando Arthur (Joseph Gordon-Levitt), o braço-direito de Dom, está explicando à Ariadne como construir cidades inteiras a partir de loops e ilusões de ótica. O script de Nolan também faz menções sutis aos mitos da Antigüidade. "Ariadne", na mitologia grega, é filha de Minos, rei de Creta, lar do temível Minotauro. Para pôr um fim ao reinado de terror do monstro cretense, Atenas envia o príncipe Teseu; lá chegando, Ariadne ajuda sua missão, confiando-lhe uma espada e um novelo de linha pra ele achar o caminho de volta do labirinto (o famoso “fio de Ariadne”) depois de abater o Minotauro. No filme, Mallorie “Mal” Cobb é francesa, e “Mal” em francês (assim como em português) significa algo errado, negativo ou desumano. Ou seja: a falecida Mal – ou melhor, sua “projeção” – é o “Minotauro” que devora Dominic Cobb por dentro, e cabe à nova “Arquiteta” do time tecer o fio que irá libertar seu mentor de sua prisão mental. É interessante constatar a dupla função de Ariadne: ao mesmo tempo em que ela é contratada para construir labirintos, é ela quem vai tirar Cobb de sua “prisão sem paredes”.

Já é hora de começar a falar a respeito da minha suposta especialidade: a música do filme. A Origem é a terceira colaboração do compositor Hans Zimmer com Christopher Nolan, sendo que a anterior, Batman: O Cavaleiro das Trevas, ganhou o Grammy na categoria de "Melhor Trilha". Dessa vez, Nolan armou uma pro compositor. Apesar de mandar o roteiro para Hans e deixar ele freqüentar o set de filmagens, Christopher Nolan trancou o seu diretor musical do lado de fora da sala de edição, forçando-o a escrever o score apoiando-se exclusivamente na sua imaginação.

A trilha de A Origem magicamente concilia o mundo repleto de velocidade e tensão da espionagem corporativa com o elemento surreal que é o mundo dos sonhos. Nesse sentido, Hans Zimmer balanceia momentos de fragilidade - um piano pianissimo imerso numa seção de cordas de dinâmica flutuante, a exemplo da faixa "Old Souls" - com instrumentos de sopro retumbantes nas cenas mais dramáticas. A música de Zimmer tem uma cara contemporânea: o compositor se empenha em construir "climas" e não temas tradicionais. Hans argumenta que uma trilha neo-romântica a lá John Williams - e ele cita as de Guerra nas Estrelas (1977) e Super Homem: O Filme (1979), especificamente - não encaixaria no contexto de A Origem. Numa entrevista ao site In Contention, ele disse que um dos seus desafios foi justamente trazer um senso de tristeza e nostalgia à história sem ser sentimentalóide, "sem roubar coisas de Rachmaninoff e Tchaikovsky". No mais, os arranjos orquestrais são reforçados aqui e acolá com sintetizadores e guitarras.

Fazer essa ponte entre música sinfônica e alta tecnologia é uma especialidade de Hans Zimmer, um dos poucos compositores hoje em Hollywood (além de Danny Elfman e Graeme Revell) a fazê-la com bom gosto e competência. Esse idioma musical idiossincrático é uma herança do seu passado New Wave, quando era tecladista do Ultravox e do Buggles. (Ele aparece brevemente em "Video Killed the Radio Star" do Buggles, o primeiro clipe a ser transmitido pela MTV). Nesse sentido Hans Zimmer lembra como O Expresso da Meia-Noite (1978) o impactou, a primeira trilha exclusivamente "eletrônica" a receber um Oscar (e um Globo de Ouro). Zimmer também cita seus compatriotas do krautrock, movimento musical alemão pioneiro em inserir técnicas da música eletrônica acadêmica (Karlheinz Stockhausen) no rock, um experimento em larga escala que gerou o Kraftwerk, Tangerine Dream, Faust, Neu! e Can, todos citados verbalmente por Zimmer como referências na hora de compor para A Origem.

Uma peça central pra entender a trilha sonora é "Non, Je Ne Regrette Rien", famosa na voz de Édith Piaf. (Só a título de curiosidade, sua última aparição de destaque na Terra Brasilis foi no Acústico MTV de Cássia Eller). "Non, Je Ne Regrette Rien" pode ser mais ou menos traduzida como “Não, não me arrependo de nada”. Uma escolha propositadamente irônica, considerando a alma torturada de Dominic Cobb, destroçada pela culpa da morte de sua amada. Essa conexão fica mais evidente se considerarmos quem faz o papel da mulher de Cobb no filme: a francesa Marion Cotillard, que vestiu a pele da cantora em Piaf – Um Hino ao Amor (2007), interpretação que lhe valeu um Oscar de Melhor Atriz.

No filme, "Non, Je Ne Regrette Rien" é escolhida para ser o kick, a contagem regressiva para os personagens acordarem. Um “internerd” sacou a referência. Baixou o pitch (tom) e desacelerou o começo da música, comparou o resultado ao primeiro cue do filme (“Half Remembered Dream”), constatou a semelhança e colocou sua descoberta no Youtube. É significativo como essa transposição de "Non, Je Ne Regrette Rien" para tons mais graves e um compasso mais lento têm um paralelo com a crescente dilatação temporal que os personagens sentem ao adentrar os níveis mais profundos do sonhar ("o sonho dentro de um sonho"). Hans Zimmer confessa que construiu a trilha do filme baseada em variações sobre as duas notas extraídas dessa introdução de "Non, Je Ne Regrette Rien", a pedido de Christopher Nolan.

Cabe dizer que da maneira ao qual foi programado, o álbum lançado pela Water Tower Music não segue cronologicamente as cenas do filme. Melhor assim. A música é apresentada de forma enxuta, resumida nas doze faixas do disco. Dessas doze composições três pra mim merecem destaque. “Half Remembered Dream” têm a citação de "Non, Je Ne Regrette Rien" comentada no parágrafo anterior. No filme ela faz parte do flash forward, onde vemos Dom (re)encontrando o seu "mecenas", Saito (Ken Watanabe), agora um ancião decrépito. (“Você quer se tornar um homem velho, cheio de arrependimento, esperando pra morrer sozinho?") Na terceira, “The Dream Is Collapsing”, ouvimos pela primeira vez na trilha a participação de Johnny Marr, ex-guitarrista do Smiths. Hans ligou para Johnny numa madrugada qualquer e fez um convite, pedindo para ele criar arranjos numa guitarra de 12 cordas que acabariam intimamente associados ao personagem de Leonardo DiCaprio. Minha favorita do álbum é a percussiva “Mombassa”, a música de fundo de Dom sendo perseguido pelos capangas da Cobol nas ruas do Quênia.

A Origem é um filme que não entrega tudo mastigado para o espectador. Ainda bem. Ele exige nossa atenção, ele desafia nossa inteligência, nos força a debruçar sobre sua história, compreender suas nuances, percorrer suas intricâncias. O final de A Origem segue essa diretiva: ele dá margem a várias interpretações. A girada que Dom dá no seu “totem” - o pião de Mal - não dá a resposta final a qual esperamos, até porque o filme termina antes dele cair.

Afinal, será que Dom conseguiu resgatar Saito e voltar à sua querida família? Li textos e mais textos de internautas discutindo a tal “teoria do anel”. Botando em miúdos: toda vez que Dom sonha ele está com seu anel de casamento e quando ele acorda o anel desaparece. Na última cena ele está sem o anel; logo, aquilo que vemos seria o final feliz que ele sonhou (trocadilho infame, eu sei)... Mas aí é que tá: não seria a ausência do anel simplesmente um sinal de que ele superou o sentimento de culpa pela morte de Mallorie? Uma interpretação alternativa seria a de que Dominic foi tragado pelo seu subconsciente e aquele final é na verdade um sonho. Vocês repararam que os filhos de Dom estão usando roupas parecidas com as da última vez que ele os viu? Tematicamente falando, é um final que lembraria o de Solaris (1972) de Andrei Tarkovsky. Solaris acaba com o protagonista consumido pelas suas fantasias, tentando reaver tudo o que perdeu... Mas será isso necessariamente ruim considerando o contexto do filme? O próprio Nolan desanca essa interpretação; as crianças que aparecem no fim não são as mesmas do começo, afirma ele...

Dom nos alerta que construir sonhos á partir de memórias é perigoso... Mas para aqueles de nós que não convivem com um "Minotauro" na cabeça, ouvir a trilha de A Origem será sempre uma boa lembrança.

O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.

 

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