Na minha resenha anterior, comentei sobre os indicados do Oscar à Melhor Trilha Sonora de 2010. Agora vou examinar uma trilha cruelmente ignorada pelos jurados – a de TRON: O Legado, assinada pelo Daft Punk. Antes de me aprofundar no tema, vou me deter um instante pra inteirar vocês sobre o universo de TRON.
A idéia dessa Esparta de guerreiros neon e déspotas digitais nasceu na cabeça de Steven Lisberger, roteirista e diretor do que veio a se tornar TRON: Uma Odisséia Eletrônica (1982). Lisberger foi pioneiro em misturar efeitos CGI (Computer-Generated Imagery) com live-action. Traduzindo: a combinação de atores com cenários e efeitos especiais gerados por computadores. Os planos ambiciosos de Lisberger coincidiram com um período em que a Disney queria investir em projetos mais arrojados, numa tentativa bem-vinda de mudar a sua imagem. Com apoio do estúdio, Lisberger montou um teste de projeção. Os executivos do estúdio ficaram impressionados com o resultado e logo começaram a re-escrever o roteiro junto com o diretor.
A trama é simples: num passado recente, um programador brilhante, Kevin Flynn (Jeff Bridges), é expulso da gigante de informática ENCOM por Ed Dillinger (David Warner), um programador rival que rouba os jogos que Flynn desenvolveu e faz uma fortuna em cima deles. Kevin quer justiça, e, com a ajuda dos ex-colegas Alan Bradley (Bruce Boxleitner) e Lora Baines (Cindy Morgan), ele consegue novamente ter acesso à ENCOM e vai hackear o mainframe da empresa em busca de provas contra Dillinger. Tudo vai bem até Flynn se esbarrar no Master Control Program (MCP), o verdadeiro manda-chuva da ENCOM. Para se livrar de Flynn, o maquiavélico MCP usa um laser experimental desenvolvido por Baines e transporta Flynn para dentro do Grid, o mundo interno dos computadores. Mal ele chega e já é jogado nos games, onde programas lutam até a “morte” numa arena cibernética. Flynn escapa de lá com vida e se junta a um programa rebelde, TRON (o self digital de Bradley), para combater o tirânico Master Control Program e seu lacaio Sark, o Ed Dillinger do Grid.
Apesar de ter sido um marco da computação gráfica e ter lucrado o dobro do seu orçamento, a Disney considerou TRON um “fracasso”. E.T., o Extraterrestre foi o grande filme de 1982, e seus lucros astronômicos fizeram a bilheteria da concorrência parecer mixaria – a de TRON, inclusive. O golpe de misericórdia: TRON foi considerado para o Oscar de Melhor Figurino e Melhor Edição de Som, só pra perder para Gandhi e E.T., respectivamente; e para o tão merecido Oscar de Efeitos Especiais nem indicado foi. (Em compensação por onde passou o filme angariou fãs, adquirindo o status de cult com o passar dos anos.)
De qualquer sorte, Lisberger desde então passou anos tentando convencer a Disney a investir num novo TRON. A Disney finalmente cedeu em 2008, decidindo então investir pesado nesse novo capítulo da saga TRON – cerca de 170 milhões de dólares, dez vezes o orçamento do original. Jeff Bridges voltou, agora no papel de Flynn pai e do seu clone vingativo, C.L.U. (“enjovecido” digitalmente, usando a tecnologia de O Curioso Caso de Benjamin Button). Uma nova geração de estrelas hollywoodianas (Garrett Hedlund, Michael Sheen, Olivia Wilde) fechou o elenco, e de resto a Disney contratou um time de primeira, a exemplo de Gwendolyn Yates Whittle, indicada ao Oscar de Edição Sonora por Avatar (2009).
Antes mesmo de ter um roteiro pronto e começar a filmar o novo diretor de TRON, Joseph Kosinski, convidou Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter, vulgo Daft Punk, para ocuparem a cadeira do compositor. A sugestão veio do DJ Jason Bentley, consultor musical dos Irmãos Wachowski, o “quem” por trás da coletânea do primeiro Matrix. Nem é preciso quebrar a cabeça pra ver o quanto a opção de Bentley e Kosinski pelo Daft Punk faz sentido. Os franceses são crias desse mesmo imaginário tecnológico que serviu de inspiração para TRON: fliperamas, luzes neon, jogos de Atari e Odyssey (quem se lembra desse último?), a house music de Chicago (capitaneada pelos DJs Frankie Knuckles e Marshall Jefferson), os primeiros PCs, animés apocalípticos tipo Patrulha Estrelar, etc., etc.
Preocupada com o produto final, a Disney marcou reuniões com compositores top de linha da indústria musical pra “darem conselhos” pra a dupla e, quem sabe, formar algumas parcerias produtivas. Gente como Christophe Beck, Harry-Gregson Williams, John Powell e Hans Zimmer foi convidada a participar dessas reuniões. O Daft Punk acabou dispensando colaborações, mas absorveu bem os conselhos desses veteranos, mergulhando de cabeça nesse novo projeto. Trabalharam em TRON por dois anos e por fim gravaram com a Orquestra Sinfônica de Londres, uma das mais prestigiadas do mundo. O resultado é um score que integra de forma natural as linguagens sinfônicas e eletrônicas – uma complementa a outra a todo instante. Foi uma proeza para muita gente, cética das habilidades orquestrais dos gauleses robóticos.
Depois do tão aguardado lançamento de TRON: O Legado, o Daft Punk deu uma série de entrevistas esclarecendo o processo de composição da trilha e apontando quais foram as suas referências musicais. Entre elas, o Daft Punk fez questão de citar John Carpenter (Halloween, A Bruma Assassina, Fuga de Nova York), Vangelis (Carruagem de Fogo, Blade Runner) e Wendy Carlos (de quem falaremos em breve), todos pioneiros em injetar scores eletrônicos nas trilhas do Tinsel Town. Gigantes da Era de Ouro de Hollywood também foram mencionados, na linha de Max Steiner, o pai da música do cinema. Outro nome repetidamente citado foi o de Philip Glass, compositor minimalista responsável pelas trilhas premiadas de O Show de Truman (1998) e As Horas (2002).
O primeiro TRON, mesmo que sutilmente, já explorava essa relação ambígua que temos com a tecnologia – como ela facilita nossa vida por um lado e nos escraviza por outro. Paralelamente a isso, o filme tinha uma olhar inocente – infantil, quase – na exploração das fronteiras do digital. Isso é refletido na trilha de Wendy Carlos, conhecida pelo seu score eletrônico dos clássicos Laranja Mecânica (1971) e O Iluminado (1980), dirigidos por Stanley Kubrick. O padrão da parceria música eletrônica / orquestral do primeiro TRON, adotado por Carlos, foi também mantido pelo Daft Punk. Apesar das óbvias semelhanças, o mundo de TRON: O Legado é irremediavelmente diferente do TRON original: a inocência daqueles tempos se foi, e nos 28 anos que se passaram, a “vida” no Grid se tornou mais complexa e perigosa. A música do Daft Punk é composta de acordo com o viés mais sombrio desse novo Grid. Em outros momentos a música de Vangelis vem à cabeça; a faixa “Arrival” sendo um exemplo de algo que se encaixaria perfeitamente em Blade Runner – O Caçador de Andróides.
TRON: O Legado carrega a marca de dois compositores bem diferentes – Philip Glass e Hans Zimmer. Os arpégios constantes e as melodias cíclicas que trilham por TRON lembram muito o trabalho do primeiro. Em relação ao segundo, alguns internautas acusaram o Daft Punk de pescarem alguns temas do mestre alemão, principalmente os de Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), feitos em colaboração com Howard Shore (aquele da trilogia O Senhor dos Anéis). Sim, é verdade: “Fall” e o tema de “C.L.U.” – a 18º faixa do CD – lembram vagamente alguns cues do segundo Batman tipo “I Am Not A Hero” e “A Dark Knight”. Pesa o fato de Hans ter sido um dos “conselheiros” do Daft Punk durante o processo de composição e do álbum ser mixado no Remote Control Studios (do qual Hans é dono), o que gerou rumores (infundados) dele ele ter “retocado” o score alheio. Apesar dessas “provas”, a influência dele sobre o segundo TRON é até certo ponto questionável. Suspeito que O Cavaleiro das Trevas seja uma referência fácil pra a maioria, até pela popularidade do filme e de sua trilha.
O DJ britânico Richard James, mais conhecido como Aphex Twin, não foi lembrado pelo Daft Punk nos últimos meses; apesar disso, TRON: O Legado também carrega sua marca. A fome desse “Mozart” da música eletrônica de inovar em matéria de timbres e células rítmicas convulsionou a cena dance mundial na década retrasada. Suas produções caseiras acabaram por romper as fronteiras da electronica e fazer a cabeça de grupos de rock à la Radiohead e Nine Inch Nails. A seqüência de glitches no meio pro final de “End of Line” (faixa 12º) ou os efeitos de timestretch nos loops de “The Game Has Changed” (faixa 8º), revelam essa influência.
Pra quem sente saudade do velho Daft Punk, “Derezzed” é um prato cheio. (No Grid, “Derezzed” é o diminutivo de deresolution, o equivalente a um programa a ser apagado.) É o som de fundo pra quando a pancadaria come solta no End of Line Club, propriedade de Castor (Michael Sheen), uma mistura de dândi andrógeno com aquele individualista cínico na tradição de Harry Morgan (Humphrey Bogart), o protagonista de Casablanca (1942).
O grande problema da trilha de TRON: O Legado não é a música em si – e sim os fãs e críticos do Daft Punk e as expectativas irreais lançadas sobre esse disco. Teve gente esperando uma volta aos bons tempos do Discovery (2001), depois de engolirem a seco o Human After All (2005). “Sabíamos desde o começo que não teria jeito de fazer essa trilha sonora com dois sintetizadores e uma bateria eletrônica”, declararam à revista Fact. Outros ansiavam por ouvir algo “revolucionário”, coisa que o Daft Punk, na verdade, nunca fez. A graça deles sempre foi esse apelo retrofuturista, reciclando o melhor do rock e do pop das décadas de oitenta e setenta com as técnicas de produção do house parisiense.
Alheio às controvérsias, TRON: O Legado entrou no Top-10 do iTunes em vários países – Alemanha, Itália, Bélgica e Canadá, pra citar alguns – e ganhou um Disco de Ouro na sua terra natal (França, pra quem já esqueceu). Nos Estados Unidos TRON estreou na 10º posição das paradas da Billboard e vendeu 189 mil cópias em menos de um mês, o equivalente a um hit no mercado americano. Isso o coloca à frente dos concorrentes A Rede Social (61 mil), A Origem (62 mil) e do outro grande lançamento da Disney nesse ano, Enrolados (74 mil). Em suma: os eleitos para disputar o Oscar de 2010.
Boatos na Web contam que a Disney já teria programado um terceiro capítulo da série TRON até antes da estreia de O Legado. O trailer de TRON 3 deve aparecer nos “Extras” do DVD de O Legado, inclusive. O Daft Punk não tem planos pra fazer outra trilha tão cedo, mas... Quem sabe eles não mudam de idéia? Estou curioso pra ver (ou melhor, ouvir!) a nova cartada deles para o terceiro TRON.
O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.
2 Comente Aqui! :
na minha opinião esta é a melhor trilha sonora de 2010, casou PERFEITAMENTE com aquilo que estava sendo mostrado em cena. Premiei o filme com a melhor trilha sonora no meu blog, da uma olhada.
http://filme-do-dia.blogspot.com/
Valeu pelo comentário, Kahlil! Já tô seguindo o seu blog.
Grande abraço.
Postar um comentário