O Planeta dos Macacos começa a bordo da Icarus, uma espaço-nave com uma missão: provar que, segundo os cálculos de um cientista da NASA (o Dr. Hasslein), ao viajarem próximo da velocidade da luz os tripulantes da Icarus não envelhecerão em nada comparados aos habitantes da Terra. Essa expedição científica é comandada pelo coronel George Taylor (Charlton Heston), um misantropo arrogante que não vê o sentido da vida no “Planeta Azul.” Após seis meses no espaço – o equivalente á 700 anos na Terra –, Taylor grava o seu relatório final, um monólogo onde faz observações cínicas a respeito da condição humana. (“Será que o homem, aquela maravilha do universo, aquele maravilhoso paradoxo que me mandou às estrelas, ainda guerreia com seu próprio irmão, deixa os filhos do vizinho passaram fome?”) Ele logo se junta ao “longo sono” dos seus colegas de vôo, fazendo os preparativos necessários para entrar em hibernação.
Em algum lugar da rota, o piloto automático da nave entra em pane e faz uma aterrissagem forçada num planeta desconhecido. Antes dela afundar de vez no lago onde caiu, Taylor dá uma olhada no painel da Icarus e percebe que ele está em 3978 – dois mil anos depois do programado. “O tempo dissipou tudo o que você conhecia,” diz à Landon (Robert Gunner). “Seus familiares estão mortos e esquecidos há vinte séculos.” O destino deles é ignorado. Talvez um planeta na constelação de Órion, a 300 anos-luz da Terra? Quem sabe. À primeira vista parece um mundo árido, sem vida. Com apenas 72 horas de provisões, as chances de sobrevivência dos astronautas são praticamente nulas. Depois de caminhar horas sem fim debaixo de um sol escaldante, eles acham o primeiro sinal de vida – uma plantinha brota daquele solo arenoso e (aparentemente) estéril. Quilômetros dali, a vegetação fica mais espessa. No caminho encontram uma cachoeira e até seres humanos, descabelados e mudos. “Se eles são o melhor que há aqui, em seis meses estaremos governando o planeta,” diz Taylor.
O coronel se desfaz de seus planos de conquista no instante em que descobre a “civilização de cabeça pra baixo” desse estranho planeta. Nele, os homens são a “raça” inferior: primitivos, iletrados, caçados como bichos por macacos que falam, oram e usam armas de fogo com uma eficiência brutal. “Humanos são um praga” diz o Dr. Zaius (Maurice Evans), o líder dos primatas. O homem “mata por esporte, prazer ou cobiça. Ele matará seu irmão para tomar sua terra” lembra o vigésimo nono papiro das Sagradas Escrituras deles. Com esse artifício, o diretor Franklin J. Schaffner dá ao homo sapiens o lugar do grande Outro, transpondo o nosso senso de rejeição e exclusão ao diferente para a tela. A nossa história recente é farta no tipo de violência que isso gera. O genocídio de um milhão de Armênios pelo Império Otomano, entre 1915 e 1917; os Nazistas e os seus campos de concentração; as limpezas étnicas da Guerra da Bósnia; ou até as perseguições às minorias não-islâmicas de Darfur, na África contemporânea. Nesse longínquo planeta na órbita de Órion, os papéis são invertidos, e os humanos são os untermensch.
Essa estrutura de dominação severa se reproduz no interior da sociedade primata, separada em três castas: os gorilas (os soldados e a mão de obra barata), os chimpanzés (os cientistas e intelectuais) e os orangotangos (os estadistas e o clero). Essa estrutura de classes é destacada pela cor desses símios: os gorilas, com seus pêlos negros, e os orangotangos aloirados, uma menção à domínio econômico do homem branco sobre o afro-americano. Nesse meio estão Cornelius e Zira (Roddy McDowall e Kim Hunter, respectivamente), chimpanzés progressistas que batem de frente com o status quo defendendo a tal da “teoria da evolução”, uma hipótese herética que afirma que os macacos são descendentes dos humanos. Apesar do ex-presidente da 20th Century Fox, Richard Zanuck, desconversar quando indagado se O Planeta dos Macacos pode ser considerado um “filme de mensagem”, é óbvio que Schaffner e seus roteiristas fizeram de O Planeta dos Macacos uma alegoria política. As analogias implícitas entre esse nada-admirável mundo novo e a sociedade de 1960 deram ampla oportunidade para Schaffner e os seus roteiristas incorporarem comentários sociológicos a respeito do cerceamento da liberdade de expressão, cegueira religiosa e preconceito racial. É difícil ignorar o fato que o filme saiu em fevereiro de 1968, o ano que a contracultura virou um fenômeno global.
Outra inversão de papéis de interesse é a do astro Charlton Heston. O herói de El Cid (1961), 55 Dias em Pequim (1963) e Khartoum (1966) virou um ícone hollywoodiano, o porta-estandarte da força e da estabilidade do império Ocidental diante dos seus inimigos. Deve ter sido dureza para os fãs de Os 10 Mandamentos (1956) e Ben-Hur (1959) assistirem Heston interpretar aquele anti-herói mesquinho, obrigado a defender a raça humana que tanto despreza. “Não deixo de pensar que em algum lugar há algo melhor que o homem”, diz para Landon no começo do filme, quando ainda caminhavam pelo perímetro da Zona Proibida.
Para entender o quão profunda foi a iconoclastia de Schaffner, deve-se contextualizar o que era ser um astronauta nos anos 1960. A década viveu o auge da corrida espacial, e os astronautas eram vistos nesse tempo como o símbolo do progresso e da prosperidade americanas. Ao colocar a tripulação da Icarus perdida em algum lugar do universo, sem rumo e longe de tudo o que conheciam, os cineastas encenaram por vias simbólicas a crise política que os Estados Unidos estavam atravessando. O jeito que Taylor ri, quando Landon finca uma bandeira americana na margem do lago, é uma solapada na jactância Made In USA.
O senso de estranheza contínuo de O Planeta dos Macacos é reforçado com habilidade pela batuta experiente de Jerry Goldsmith. A música do filme é propositadamente “difícil”. Não há melodias “normais” à vista e debaixo de tantas orquestrações dissonantes e macaquice poliritmada, até os temas recorrentes da trilha são difíceis de identificar. Em O Planeta dos Macacos, é a evidente influência da música erudita do século XX. Em particular, dos compositores Béla Bartók (1881-1945), Igor Stravinsky (1882-1971) e de uma forma tardia de serialismo, conhecida como “pontilhismo”, associada a Pierre Boulez, Luciano Berio e às primeiras obras de Karlheinz Stockhausen.
Lembrando que o grande sucesso da década foi A Noviça Rebelde (1965), a trilha de Jerry Goldsmith foi radicalmente inovadora. Ainda o é, na verdade. A única trilha sonora que chegaria perto disso nesse período foi a de 2001: Uma Odisséia no Espaço, do mesmo ano. Chega perto, mas não iguala, visto (ou melhor, ouvido) que o impacto causado pelos clusters macabros de György Ligeti são atenuados pela famosa valsa de Johann Strauss, “Danúbio Azul”, pelo balé melancólico de Aram Katchaturian (“Gayane”) e a entrada triunfal de “Assim Falou Zaratrustra” de outro Strauss, Richard. Em O Planeta dos Macacos, Goldsmith não perdoa os ouvidos sensíveis, insistente na sua dissonância orquestrada.
Um resumo da direção musical que Jerry Goldsmith imprimiu ao Planeta dos Macacos pode ser acompanhado no “Main Title”. Ela aparece no filme logo após Taylor ter ido hibernar. Sua introdução parafraseia o começo do adágio de Music for Strings, Celesta and Percussion (1936) de Bartók. Depois dessa prova de respeito ao compositor húngaro, sobrevem um som que Jerry descreveu como um “gemido subumano.” É um bass slide whistle, uma mistura de apito com um mini-trombone de vara (lá ele) que soa uma oitava abaixo do padrão. Lá pelas tantas entra a percussão, e com ela ouvimos a brasileiríssima cuíca, imitando as vocalizações histéricas de um macaco. Ao fazer essa mistura de instrumentação “étnica” com um idioma modernista, Goldsmith evoca a paisagem desolada de uma África alienígena e primordial.
Quanto à Stravinsky, sua influência é sentida em “The Hunt”, quando os sobreviventes da Icarus avistam os macacos pela primeira vez, a cavalo e atirando para matar. Sua peça mais conhecida, o balé Le Sacre du Printemps (“A Sagração da Primavera”, 1917), é um mergulho no passado da Rússia pagã, marcado pela barbárie de suas guerras tribais e sacrifícios humanos. Essa junção do moderno e primitivo condiz com o panorama pós-apocalíptico do filme. A cuíca reaparece ruidosamente, junto com uma trombeta de corno. Apesar de só emitir 2 notas, esse instrumento de sopro “é muito eficiente!”, exclama Goldsmith, rindo.
Num almoço com o diretor, discutindo sobre qual forma tomaria a música de O Planeta dos Macacos, Goldsmith disse para Schaffner que queria um score “orgânico” e evitaria o uso de música eletrônica. Apesar de mal ter começado a despontar dentro da 7º arte, a música eletrônica já era tida como um clichê nos filmes de ficção científica, tendência iniciada por filmes como O Dia em que a Terra Parou (1951) e O Planeta Proibido (1956). Ainda assim, Goldsmith admitiu que era um “fator viável”, a música eletrônica, e acabou utilizando um Echoplex no “Main Title”, uma aparelho que funciona à base de fitas magnéticas que simularam um efeito de eco nos instrumentos de corda.
Enquanto se ocupou de O Planeta dos Macacos, Jerry Goldsmith teve um aliado inesperado: Mickey Mouse. Emil Richards, o percussionista da orquestra da 20th Century Fox, trabalhou com a Disney nos anos 1930 e tinha um baú cheio de instrumentos exóticos. Foi dele que Goldsmith montou o seu arsenal percussivo. Um exemplo do que ele adquiriu em ação é “The Seachers”. Quando os astronautas estão a descer de uma encosta íngreme, Richards faz uma cacofonia com panelas de aço industriais, assim que eles perdem o equilíbrio e rolam monte abaixo.
Apesar dos efeitos percussivos inusitados e do teor predominantemente atonal com que o compositor escolheu trabalhar, os momentos de maior desconforto “psicoacústico” durante o filme advém do silêncio desconcertante que Goldsmith impõe à platéia. O compositor revela que Schaffner deu carta branca para ele poder trabalhar como quiser a música do seu filme; Goldsmith optou por um pouco de sutileza, evitando encher a audiência de adrenalina o tempo todo. A confirmação que existia vida nesse planeta – o arbusto crescendo em meio àquela vastidão desértica – é um exemplo de como ele usa da quietude como uma estratagema. Reparem que essa descoberta dramática não recebe nenhum reforço da música. Na fuga do cárcere, onde Taylor recebe a ajuda do sobrinho de Dra. Zira, Lucius (Lou Antonio), é de se esperar uma música que refletisse a tensão do momento de fuga... Mas não. “Isso é incrível para mim” disse Jerry quando reviu a cena depois de 20 anos; “tudo é feito de forma tão silenciosa e realista”, comenta. Na terrível revelação guardada para o final, Goldsmith continua com o seu “mais é menos.” No clímax do filme, é só a maré que ouvimos ao fundo, enquanto Taylor realiza, para o seu desespero, onde ele realmente estava esse tempo todo...
Frank Schaffner fez do seu Planeta dos Macacos uma sátira social na tradição de Jonathan Swift, autor de As Viagens de Gulliver (1726). Os humanos, involuídos nessa fábula distópica, foram vítimas de suas cabalas, de sua fome por poder. Do seu lado, Goldsmith desafia os nossos parâmetros musicais com algazarra politonal, ritmos assimétricos e instrumentação não-ortodoxa, uma representação sonora apta para uma civilização às avessas. De todo os cenários de fim de mundo – o apocalipse bíblico, uma hecatombe nuclear, a “grande onda” de Trigueirinho (!) – será esse o nosso destino? Um “elo perdido” na cadeia evolutiva, usurpados do nosso pole position por símios mutantes, mais aptos na luta pela sobrevivência do que nós?
Quem pagará pra ver? Mas, enquanto 2012 não vêm... Que tal re-assistir um clássico?
O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.
1 Comente Aqui! :
Adoro as tramas sobre O Planeta dos Macacos. Do clássico com Heston, passando pelas versões de Burton e chegando a nova trama.
A trilha sonora original, a meu ver, é impactante e me marcou muito.
Música tensa, profunda e apaixonante.
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