Crítica: 2001 - Uma Odisséia no Espaço (trilha sonora)

24 de junho de 2010 2 Comente Aqui!

Um dos diretores mais influentes do nosso tempo, Stanley Kubrick (1923-1999) não precisa de grandes introduções. Kubrick entrou para a história devido ao seu perfeccionismo técnico, seu estilo inovador de direção e a capacidade de trabalhar com um amplo leque de temas, sempre abordados com brilhantismo e competência. Corajoso, o diretor explorava assuntos controversos, a exemplo da Guerra do Vietnã (Nascido para Matar), pedofilia (Lolita) e a delinqüência juvenil (Laranja Mecânica).

O seu primor artístico fez de 2001: Uma Odisséia no Espaço – o filme da resenha de hoje – uma obra-prima. Kubrick e o autor de sci-fi Arthur C. Clarke construíram um roteiro que descreve os primeiros encontros de nossa espécie com uma civilização alienígena, temperados com o pessimismo e a ironia tão caros à esse diretor. Considerado o melhor filme de ficção científica já feito, 2001 marcou as carreiras de Martin Scorsese, Steven Spielberg e Ridley Scott, entre outros colegas de profissão. O filme lhe rendeu o único Oscar de sua carreira – o de efeitos especiais.

A prova que Kubrick tinha um excelente ouvido e um senso de timing impecável aparece logo na abertura de 2001. Atmospheres, de György Sándor Ligeti (1923-2006), é a música de fundo por dois minutos de escuridão espacial. Assim como outras peças atonais do compositor, ao ouvir essa trilha o espectador é tomado por sensações de repulsa, estranheza e horror. Essa combinação de imagem e som nos remete ao medo que a nossa espécie teve por muito tempo da noite primordial, refletida na vastidão e gelidez do espaço sideral. Essa escuridão cessa eventualmente e, sob os créditos de abertura do filme, ouvimos a entrada triunfal de Also Sprach Zarathrustra. Uma das mais célebres composições do século XX (por causa do filme, inclusive), o poema sinfônico de Richard Strauss acompanha com perfeição o alinhamento entre a Terra, o Sol e a Lua, um símbolo zoroastrista que aparece repetida vezes no correr da história.

2001 começa na pré-história, quatro milhões de anos atrás. Em algum lugar da savana africana, um bando de australopithecus afarensis disputa por um poço de água. Os invasores expulsam os “donos” do lugar, forçando-os a dormir numa caverna próxima. A sorte deles muda quando um ancestral nosso acorda e avista um imponente monólito na porta do rochedo. O bando começa a gritar de medo, mas logo logo tomam coragem e acabam se aproximando daquele estranho objeto... Esse primeiro contato com o misterioso monólito mudará o destino da humanidade... para sempre.

Esse contato inicial se dá ao som de Requiem, outra de Ligeti. O compositor húngaro pega o formato de uma missa fúnebre tradicional (réquiem) e aplica técnicas de música de vanguarda, transformado-a numa missa negra. Visionário como era, Kubrick fez uma ótima escolha pra mostrar o assombro dos nossos antepassados diante de algo que não era desse mundo. O Requiem aparece em outros momentos-chave, sempre ligados à presença extraterrestre – a descoberta do monólito na lua, a seqüência “interdimensional” do final, etc.

Curiosamente, a primeira vez que Ligeti soube do uso dessa e de outras músicas suas em 2001 foi quando ele próprio assistiu o filme (!). Injuriado, escreveu uma carta pra a MGM e pra Kubrick, reclamando por não ter sido consultado, e recebeu uma resposta do tipo, “Você tem sorte, agora você é famoso nos Estados Unidos...” Advogados foram acionados, acordos foram fechados, e US$ 3.500 desembolsados. Pouco, em minha opinião, considerando o papel vital que as trilhas sonoras têm no cinema de Kubrick...

Zarathustra aparece de novo quando o líder do bando tem um insight: ele descobre que pode usar o fêmur de uma anta como arma. Kubrick conecta esse salto quântico de inteligência – influenciada, implicitamente, pelo monólito – com os nossos impulsos de agressão e territorialismo. (Comprovadamente, as guerras são as maiores responsáveis pelos avanços tecnológicos). Depois dessa cena a ligação entre o poema sinfônico de Strauss e o livro que o inspirou, Assim Falou Zarathustra (1892), fica mais clara. Nele, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche desenvolve o seu ideal do übermensch – o homem que destrói seus antigos valores para construir novos, tornando-se assim um super-homem. 2001 é impregnado do niilismo nietzschiano: nele vemos a evolução do macaco para o homem, e depois a transformação do homem em super-homem (nesse caso, o Star Child).

A inclusão da famosa valsa de Johan Strauss, Danúbio Azul, parece à primeira vista estranha pra um filme sci-fi. Ela foi criticada, inclusive, por ser uma opção “banal demais” para um filme desse porte. As vozes da discórdia perdem força depois de vermos a Space Station V girando graciosamente pelo espaço, quase a encenação de um balé cósmico. Danúbio Azul capta bem a beleza dessas imagens em gravidade zero.

A próxima faixa, também de Ligeti, é Lux Aeterna (“Luz Eterna”, latim), outro cântico tradicional modificado. Ela aparece quando o Dr. Heywood Floyd (William Sylvester) pousa na lua para investigar a descoberta de um segundo monólito, enterrado debaixo da superfície lunar. Ligeti novamente sacaneia o nosso ouvido mandando um coral entoar a capella (ou seja, sem acompanhamento instrumental) os 12 tons ao mesmo tempo, em várias oitavas. O que acontece é: 1) você não consegue identificar o centro tonal da música e 2) a peça soa terrivelmente dissonante.

Explico. O nosso ouvido ocidental está acostumado a ouvir melodias e harmonias numa determinada combinação de intervalos entre as notas, chamadas de escalas ou modos. Por exemplo, se ouvimos algo que soa “triste”, provavelmente estamos ouvindo uma escala menor natural. Se for “alegre”, provavelmente é uma escala maior. Se for “árabe”, pode uma harmônica menor, e assim por diante. A combinação de todas as notas, as sete (Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si) e mais os cinco bemóis / sustenidos entre elas, é chamada de escala cromática. A técnica de juntar todas 12 notas e tocá-las ao mesmo tempo, num grande acorde cromático, é chamada de cluster (“cacho”, em inglês). Ligeti usa e abusa de clusters na sua obra.

Menos conhecida, o adágio do balé Gayane, do compositor armênio Aram Khachaturian, também têm sua importância. O balé original se passa na União Soviética, e conta a história de uma camponesa que entra num dilema ao descobrir que o marido traiu seu país. Em 2001, esse adágio mostra a solidão da tripulação a bordo do Discovery One, a espaço-nave que vai rumo a Júpiter e que se tornará o centro dos acontecimentos mais dramáticos do filme.

Algumas palavras finais, se me permitem. Entre suas inovações estilísticas, Kubrick introduziu uma era no cinema onde a música não era só mais uma peça de decoração, mas algo indissociável da narrativa. Kubrick nunca tratou seu temp track como uma coadjuvante: pôs a música na frente. Além disso, as escolhas idiossincráticas do diretor de 2001, de Danúbio Azul aos sons ultra-modernos de Ligeti, conseguiram evitar vários clichês da ficção científica... E pensar que a MGM tinha pressionado o diretor a fazer uma trilha mais “normal”! A MGM chegou a encomendar um score inteiro para o veterano Alex North (Spartacus, Os Desajustados, Uma Rua Chamada Pecado), que acabou sendo descartado sonsamente por Kubrick.

Ainda bem, caros leitores. Ainda bem, caros ouvintes. Louvemos eternamente a cabeça-dura de Stanley Kubrick.

O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.

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