Críticas: Porgy e Bess (trilha sonora)

30 de junho de 2011 0 Comente Aqui!

O tempo é juiz de todas as coisas. Esse é um truísmo especialmente válido para a história da arte. O Falcão Maltês e Cidadão Kane – marcos do cinema – perderam o Oscar de “Melhor Filme” para Como Era Verde Meu Vale (1941), um trabalho competente de John Ford, mas nada de outro mundo. Lembram de Blade Runner – O Caçador de Andróides (1982)? Teve de aturar um fracasso de bilheteria e revisões mil até seu diretor, Ridley Scott, se dar por satisfeito e lançá-lo do jeito que sempre quis vinte e cinco anos depois. Hoje, Blade Runner disputa com 2001: Uma Odisséia no Espaço o título de melhor filme de ficção científica já feito. Eternizada como a maior das óperas americanas, Porgy and Bess faz parte dessa coleção de injustiçados pela 7º arte, ainda esperando ser vingada pela história.

Porgy (1925), o livro, foi escrito por DuBose Heyward, um aristocrata sulista cuja família foi devastada economicamente pela Guerra Civil Americana (1861-1865). A situação financeira precária dos Heywards forçou DuBose a trabalhar desde cedo. Largou a escola aos 14 anos, embora ao longo de sua vida mantivesse interesse nas diversas formas de expressão literária, ganhando prêmios pelas suas peças, prosa e poesias. Seu fascino pela resiliência da cultura Gullah de Charleston, sua cidade natal, foi o que inspirou a escrever Porgy. Porgy, inclusive, foi apontado por historiadores como o primeiro romance americano a não tratar a cultura negra de forma condescendente, apesar de em alguns cantos o texto estar cativo à estereotipia. O livro se tornou um bestseller e foi adaptado em 1927 para o teatro com enorme sucesso por DuBose com a ajuda de sua mulher dramaturga, Dorothy.

O cenário de Porgy é Catfish Row, um cortiço fictício de Charleston, cidade portuária da Carolina do Sul (EUA). Nele moram os dois protagonistas da história, Porgy e Bess. Ele, um mendigo aleijado de coração generoso; ela, uma prostituta beberrona. Seus vizinhos são o traficante Sportin’ Life, Robbins e sua esposa Serena, a maternal Maria e Crown, o cafetão de Bess. É fim de dia em Catfish Row, e o sábado á noite é tomado pela jogatina. O jogo de dados vai noite adentro, até que sobram Crown e Robbins na disputa. Crown perde para Robbins e, já embriagado e “cheirado”, se recusa a pagar o vencedor. Aí começa a confusão, até que Crown mata Robbins com um gancho no estômago.

Crown foge e Bess tenta se esconder, mas ninguém quer ajudá-la. Porgy é o único que aceita abrigar Bess, até porque sempre nutriu uma paixonite pela moça. Os dois vivem bem juntos por um tempinho, e Porgy consegue fazer de Bess uma mulher direita. A lua de mel acaba quando Crown retorna e a encurrala Bess sozinha durante o piquenique da igreja, estuprando-a na floresta. Depois disso Bess é acometida por uma febre aguda e delírios. Porgy reza pela sua recuperação. Quando Bess fica melhor, um furacão varre Catfish Row, e Crown aparece de novo. Porgy e ele duelam até morte por Bess, com Porgy saindo vitorioso. Um final feliz? Que nada. Sportin’ Life, que cortejou ela esse tempo todo, cata Bess e a leva pra Nova York. Porgy, inconsolado, vai atrás...

Antes mesmo da peça emplacar, George Gershwin entrou em contato com DuBose Heyward com a intenção de fazer de Porgy uma ópera legitimamente americana, uma ópera “que agradasse uma grande parcela de nossa população”. Cunhou até um termo para esse novo tipo de espetáculo – a “folk opera” (literalmente “ópera do povo”). Viu no livro a oportunidade de fazer seu Tristão e Isolda, com Porgy e Bess ocupando o lugar do mais novo par trágico do panteão operístico.

A base da ópera de Gershwin foi a fascinação de uma vida inteira com a música negra americana, aquela que ouvia na infância enquanto passeava de patins pelo Harlem – o jazz, o blues, os spirituals. Quando ele a traz para as salas de concerto, Gershwin molda sua matéria-prima com a ajuda de árias, leimotifs, contrapontos barrocos e até as técnicas serialistas de Arnold Schoenberg (1874-1951), pai do atonalismo. É a música das ruas trajada com requinte sinfônico.

Uma regra básica de sobrevivência no showbiz é estar ligado no que a concorrência anda aprontando. Nesse sentido Gershwin sempre esteve de olho nas óperas “socialmente conscientes” do compositor Kurt Weill (1900-1950). Junto ao dramaturgo Bertolt Brecht (1898-1956), Weill saltou dos cabarés de Berlim para o estrelato com A Ópera dos Três Vinténs (1928). A admiração era mútua – Weill gostava de Porgy and Bess, que serviu de base para os musicais feitos por ele depois que se mudou pros Estados Unidos: Street Scene (1947) Lost in the Stars (1949) e seu maior sucesso da Broadway, Lady in the Dark (1941).

Assim como outros grandes nomes de Broadway da sua geração, Gershwin ansiava por ser reconhecido como um compositor “sério”. Durante uma breve estadia em Paris para estudar composição, conheceu pessoalmente Milhaud, Prokofiev, Stravinsky e Ravel. Quando Gershwin pediu pra esse último ser seu professor, ele disse que não tinha nada a ensiná-lo. Mas foi na Áustria que fez sua visita que marcou. Ele se identificou de imediato com Alban Berg (1885-1935), um dos líderes da chamada “Segunda Escola Vienense”, junto aos colegas Schoenberg e Anton Webern (1883-1945), mestres do dodecafonismo. Um quarteto de cordas apresentando Lyrical Suite (1926) na residência do compositor impressionou-o profundamente. Gershwin também se entusiasmou pela estréia americana da ópera Wozzek (1925), do mesmo autor, em 1931.

Apesar da sua importância, Porgy e Bess é baseada numa premissa problemática. Como é que um judeu do Brooklyn (Gershwin), filho de imigrantes russos, e um aristocrata branco sulista (Heyward) poderiam recriar com fidelidade um vilarejo de pescadores de 1912, mesmo Catfish Row sendo fictícia? Será que a direção musical escolhida por Gershwin pôde pintar um retrato plausível dessa realidade? A comunidade negra norte-americana foi pouco receptiva em relação à Porgy and Bess. Duke Ellington (1899-1974), em particular, emitiu críticas inflamadas a respeito da ópera, questionando enfaticamente a sua autenticidade. Para ele Porgy and Bess reforçava o estereótipo de que negros de baixa renda tendem a recorrer á drogas e à violência para resolver seus problemas. Numa entrevista dada na época, Ellington comentou que Gershwin foi inepto em captar o “suingue” das ruas. Como exemplo, Duke apontou a formatação problemática dos spirituals de Porgy and Bess, que em sua opinião nada têm a ver com os representantes legítimos do gênero. Abstraindo o radicalismo do jazzista – ele se retratou publicamente depois dessa entrevista – musicólogos têm reforçado essa percepção, detectando a forte influência do klezmer e de outras formas de musicalidade judaica nas melodias de Porgy and Bess. Isso certamente foi verdade pra um amigo de Gershwin, o pianista Oscar Levant. Ele comentou ironicamente que Porgy and Bess “era a melhor ópera judaica já feita.” Iídiche demais, Gullah de menos.

Polêmicas à parte, com o passar dos anos Porgy e Bess foi ganhando legitimidade artística e aceitação do público. Alguns gigantes do jazz se aventuraram em releituras bem-recebidas da ópera. Louis Armstrong e Ella Fitzgerald se juntaram em 1957 para gravar um álbum duplo pela Verve de duetos com trechos de Porgy and Bess. Ira Gershwin, irmão e colaborador de George, ficava espantado pelo talento da cantora. “Eu nunca soube como nossas canções era boas até ouvir Ella Fitzgerald cantá-las”, disse ele. (Ira, junto à Heyword, escreveu o libreto da ópera). Miles Davis e Gil Evans fizeram seu próprio Porgy and Bess um ano depois, tornando-se o disco de jazz mais vendido do país. O caminho agora estava aberto para a próxima metamorfose de Porgy and Bess: do livro para o teatro (1926-1927), da peça para a ópera (1933-1935) e agora da ópera para o filme.

A transformação de Porgy e Bess em filme rendeu uma dor de cabeça homérica para todos envolvidos. Ira Gershwin resistiu essa adaptação por 25 anos, certo de que Hollywood faria uma versão bastarda da ópera do seu irmão. Foi Samuel Goldwyn (o “G” da MGM) quem conseguiu finalmente demovê-lo. Passada essa fase, encontrar atores dispostos a fazer os papéis principais foi um problema sério. Sydney Poitier, o primeiro afro-americano a ganhar um Oscar, só depois de muita resistência aceitou fazer Porgy. Ele achava a história original anacrônica e racista, mas ficou temeroso que sua recusa afetaria sua carreira. Teve também o episódio da demissão de Rouben Mamoulian (1897-1987), diretor da peça original, que até então vinha dirigindo musicais de sucesso como Oklahoma! (1943) e Carousel (1945). Ele foi substituído por Otto Preminger, o homem por trás de Anatomia de um Crime (1959), Exodus (1960) e Tempestade Sobre Washington (1962). A briga de Mamoulian com Samuel Goldwyn prejudicou seriamente o futuro do diretor em Hollywood.

Talvez o único a colher os louros dessa grande produção foi André Previn, encarregado por Goldwyn de supervisionar a trilha sonora. Previn já ganhara um Oscar e um Grammy pelo musical Gigi (1958) e se dedicou com afinco à Porgy and Bess. Previn enxugou as quatro horas da produção original em 2h e meia de filme e minimizou seus aspectos operísticos. A produção da trilha levou 6 meses – o dobro de duração das filmagens. Em reconhecimento ao seu trabalho descomunal Previn ganhou um Grammy e um Oscar (“Scoring of a Musical Picture”) – o único dos três ao qual o filme foi indicado. Passados quatro anos Porgy and Bess foi certificado com um disco de ouro nos EUA por ter vendido mais de 500 mil cópias, marca rara para o gênero.

Pena que Porgy e Bess, o filme, não teve o retorno financeiro esperado. Dos sete milhões que a Columbia Pictures enterrou na produção, recuperou quatro. Poucas semanas depois de sua estréia Goldwyn o retirou de circulação. Aparentemente Porgy and Bess tinha ofendido a parcela militante da comunidade afro-descendente e Goldwyn não queria esse tipo de publicidade negativa. O fato da Columbia Pictures e o próprio Ira Gershwin não darem à mínima pro filme afundou Porgy and Bess de vez. Outro contratempo: pelos termos do contrato assinado com os Gershwins, Samuel Goldwyn deteve os direitos do filme por apenas 15 anos. Quando o contrato expirou os herdeiros do compositor não o renovaram. A família Gershwin desde então têm se recusado a liberar os direitos de exibição do filme – salvo raras e honrosas exceções, no caso de sessões privadas no Library of Congress. Resumo da ópera: não existe Porgy and Bess em VHS ou DVD. Não oficialmente, pelo menos.

No ano passado comemoraram-se os 75 anos de Porgy and Bess. George Gershwin fez de Porgy and Bess sua obra-prima; nela é preservado um sincretismo musical que reflete brilhantemente o caldeirão cultural que é os Estados Unidos da América. Infelizmente, Gershwin teve pouco tempo para aproveitar seu triunfo artístico. Foi diagnosticado com um tumor cerebral e morreu em 11 de Julho de 1937, aos 38 anos de idade. Se tivesse vivido o suficiente, quem sabe Gershwin não teria se envolvido diretamente com a produção do filme? Quem sabe Porgy and Bess não teria tido um destino diferente guiado pelas mãos de seu criador? Antes que isso vire um jogo interminável de “quem sabes”, sejamos realistas; só podemos esperar o dia em que os herdeiros de Gershwin mudem de idéia para poder vermos, finalmente, um Porgy e Bess restaurado com sua trilha lindamente remasterizada. Afinal, esse o único registro cinematográfico dessa peça vital da vida musical americana. Quem sabe – o último, eu prometo – Porgy and Bess não terá a apreciação que merece pelo cinéfilo de 2011?

O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.

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