Crítica: Blade Runner - O Caçador de Andróides (trilha sonora)

20 de outubro de 2011 1 Comente Aqui!

Los Angeles, 2019. Vista de cima, a cidade parece um Hades pós-industrial: um vasto negror pontilhado por milhares de luzes incandescentes, atravessada de vez em sempre por carros voadores (spinners) se esgueirando entre labaredas de fogo que jorram do topo dos arranha-céus. Perto da superfície, a paisagem é igualmente desolante: punks, hare krishnas e imigrantes ilegais trafegam as ruas sujas e alagadas da “Cidade dos Anjos”, banhados pela luz dos letreiros neon. Não é o futuro utópico imaginado pelos autores da hard science fiction (Robert Heinlein, Isaac Asimov, Arthur C. Clarke) onde a ciência, essencialmente benevolente, dita uma engenharia social regida por um logos desapaixonado e por conquistas tecnológicas de cair o queixo: teletransporte, máquinas do tempo, espaçonaves e impérios intergalácticos. Blade Runner – O Caçador de Andróides (1982) é um tipo de sci-fi que explora outro espaço: o interno. É no íntimo da alma humana que ele centra; sua cênica é dominada por crises de identidade, ambigüidade moral, a vida dura na sarjeta e a perplexidade da nossa espécie diante da finitude. E sobra espaço pra falar um pouco de amor, até.

Blade Runner foi baseado no conto Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968), de Philip K. Dick. Foi a primeira das muitas adaptações da obra do autor, seguida por O Vingador do Futuro (1990), Minority Report – A Nova Lei (2002) e O Homem Duplo (2006) entre elas. O protagonista do filme é Rick Deckard (Harrison Ford), ex-integrante de um esquadrão de elite da polícia, os “Blade Runners”. São oficiais treinados em caçar e “aposentar” replicantes, andróides projetados pela Tyrell Corporation. Retirado de sua aposentaria pelo antigo patrão, Bryant (M. Emmet Walsh), Deckard é obrigado a encontrar um grupo de replicantes foragidos, liderados por Roy Batty (Rutger Hauer). Roy e sua irmandade sintética querem encontrar o “pai” deles, o fundador da Tyrell, Dr. Eldon, um misto de Big Brother do século XXI com um Steve Jobs da biotecnologia. A missão deles era alterar os seus prazos de validade, nem que isso resultasse num banho de sangue. (Esses replicantes top de linha, os Nexus-6, são programados para a autodestruição em quatro anos). Blade Runner é um caso clássico do que Asimov cunhou de “síndrome de Frankenstein” – a criatura se volta contra o seu criador, um castigo pelo cientista brincar de Deus.

O diretor de Blade Runner, Ridley Scott, teve de enfrentar o equivalente às dez pragas do Egito para conseguir terminar o filme. A primeira crise que chegou à mesa foi a demissão do produtor e roteirista Hampton Fancher, por causa das famosas “diferenças criativas.” Philip K. Dick comprou essa briga desde cedo, sacaneado por Ridley Scott ter “destruído” um de seus romances favoritos. Scott também arranjou confusão com a sua equipe americana. A falta de tato do diretor perfeccionista, acostumado com a docilidade das equipes técnicas britânicas, fazia os ianques se sentiram desrespeitados. Os expedientes noctívagos, começado de tarde e terminando só quando o sol raiasse de novo, fez o jogo duro com a sua equipe exausta virar um cabo de guerra. Um motivo extra para haver fricção no set era a falta de química entre o suposto par romântico do filme, Deckard / Harrison Ford e Rachel / Sean Young. Ford era grosso com a sua colega, botando a atriz novata pra chorar entre as cenas de "amor" dos dois. A pressão vinda de cima, devido ao orçamento estourado, também era de lascar.

Lançado cinco meses depois de E.T., o Extra-Terrestre (1982), Blade Runner não podia ter sido mais diferente – e a recepção fria reservada a ele confirmou que nesse espaço de tempo as expectativas do público tinham mudado depois do blockbuster de Steven Spielberg. A audiência da época achou o filme arrastado, violento e a trama difícil de entender. Um ponto fraco evidente de Blade Runner era a locução em off de Rick Deckard, imitação de clássicos noir tipo Pacto de Sangue (1944) e Fuga do Passado (1947). Era algo que Ridley Scott quis desde o começo, mas Harrison Ford relutava em fazer. O ator achava que as cenas deveriam falar por si, e a narração em off só reiterava o óbvio. Os executivos da Warner Brothers ficaram do lado do diretor. Na cabeça deles, Blade Runner ficaria menos confuso com a locução. Contrariado, Ford sabotou a gravação, fazendo a narração o mais monótona possível. Ela mesmo assim parou no filme.

Na esperança de recuperar as perdas, a Warner foi rápida em escoar seu produto para formatos incipientes da indústria de entretenimento: a TV a cabo e mercado de fitas VHS. Foi onde o culto à Blade Runner começou. Passada uma década, Blade Runner atingiu um nível recorde de saída nas locadoras e o filme já tinha vendido meio milhão de unidades até seu relançamento. Depois de um funcionário da Warner descobrir no depósito deles uma versão pré-histórica do filme – a Workprint – ele foi relançado pelo estúdio em 1991, obtendo uma receita incrível onde re-estreou. Ao finalizar Thelma e Louise, Ridley Scott passa quase um ano engajado em remontá-lo, e aí temos Blade Runner – Director’s Cut (1992). Além de retirar a infame locução de Ford e o final feliz, Ridley Scott inseriu a polêmica cena do unicórnio, que deixa implícito através de um sonho que Deckard seria na verdade um replicante (talvez um Nexus-7, o único de sua espécie). Em 2007 foi lançado Blade Runner – Final Cut, um DVD triplo que continha quatro versões do filme mais um disco com galerias da arte, entrevistas com o diretor e elenco, etc.

Num filme tão singular quanto Blade Runner, são muitos os elementos integrais para o seu “redescobrimento”. Enumero: o design elaborado de Syd Mead; a direção obsessiva de Ridley Scott; o roteiro de Hampton Fancher e David Peoples, saído de um universo paralelo onde Raymond Chandler escreveu para a Heavy Metal. Nesse catatau destaca-se a música de Evángelos Odysseas Papathanassíu, conhecido como Vangelis há 40 anos. Um pianista autodidata, se encantou na juventude pelo mundo mágico dos Moogs e dos Fender Rhodes. Depois que a “Junta dos Coronéis” assumiu o governo de sua terra natal, Vangelis fugiu para a França e fundou o Aphodite’s Child, um power trio formado por expatriados gregos em Paris. Apesar de serem virtualmente desconhecidos desse lado da deriva continental, o rock progressivo do grupo vendeu zilhares na Europa. Ainda no Aphrodite’s, Vangelis enveredou para filmes e séries de TV, e um contrato generoso com a RCA financiou o Nemo, seu estúdio de 24 canais em Londres. Esse “laboratório de áudio”, como o gostava de chamá-lo, foi a base de Vangelis pelos próximos treze anos.

Nos primeiros tempos de Nemo Vangelis ganhou maior visibilidade ao fazer parte da trilha de Cosmos (1980), série do astrônomo Carl Sagan e ao produzir a trilha sonora do premiado Carruagem de Fogo (1981). Esse filme lhe rendeu um nomeação ao Globo de Ouro, um Oscar e 3 milhões de discos vendidos apenas no primeiro ano de lançamento. Ridley Scott e Vangelis se conheceram durante a pós-produção de Carruagem de Fogo. O diretor estava “de ouvido” no trabalho do compositor quando o chamou para assistir de Blade Runner. Vangelis saiu impressionado da sessão e imediatamente concordou em fazer a música para o filme.

A trilha de Blade Runner foi comparada injustamente com Carruagem de Fogo. Vangelis praticamente carregou o segundo nas costas, enquanto a música de Blade Runner assume um papel mais tradicional. Mesmo com suas texturas eletrônicas ela é fiel aos preceitos da Era de Ouro hollywoodiana: ela é sutil, não obstrui a narrativa e “comenta” as cenas quando necessário. De qualquer forma o seu valor foi prontamente reconhecido, sendo nomeada como melhor trilha do ano pelo BAFTA e pelo Globo de Ouro (perdeu nas duas instâncias para E.T., de John Williams).

Tão estrela quanto Vangelis foi o seu Yamaha CS-80. Pesando 200 libras (o equivalente a 91 quilos), esse trambolho foi o sintetizador favorito do compositor desde Spiral (1977), o seu quinto álbum solo. É dele que vem o famoso timbre de Blade Runner, tão admirado e copiado. (Basta contar o número de vídeos do Youtube que ensinam a imitá-lo.) Seu nome é saw – literalmente “serra”, pois o formato dessa onda sonora lembra a de uma serra. Picos de volume programados, ligados a um patch sinfônico e ajustes no potenciômetro do sintetizador para a nota oscilar fora de tom são os segredos por trás da assinatura sonora de Vangelis em Blade Runner.

Vangelis injetou uma variedade de instrumentos acústicos na trilha, emprestando um caráter mais orgânico à música. O supracitado sax de “Love Scene” é um deles. O saxofone é geralmente ligado aos prazeres urbanos da vida noturna e condiz com o estilo neonoir do Blade Runner. Um piano assoma na cena mais delicada do filme. Numa de suas visitas para o apartamento de Deckard, Rachel toca uma adaptação feita por Vangelis da 13º das variações de piano do compositor Fréderic Chopin (1810-1849). Um colecionador de instrumentos de percussão, garimpados nas suas andanças pelo mundo, os sinos e gongos do tecladista ateniense também comparecem.

Uma característica da trilha de Blade Runner é a sua profusão de reverb (“reverberação”). É o efeito que acontece num recinto fechado, onde um som inicial se propaga pelo espaço, ampliado por uma multidão de ecos, e é gradualmente absorvido pelo ar e pelas paredes até sumir. Quanto mais lenta essa absorção acústica, maior a reverberação. No cinema, o reverb é utilizado para indicar um sonho ou um flashback, algo que ative a lembrança de uma seqüência de eventos passados. Ele é de grande valia para estabelecer o clima de “nostalgia futurista” do filme.

Para chegar a nós, a trilha sonora de Vangelis teve um caminho tão espinhoso quanto o(s) lançamento(s) do filme de Ridley Scott. Existem mil teorias sobre qual seria a verdadeira razão desse atraso monumental; foram doze anos de espera, tão somente. A mais persistente delas especula sobre a irritação de Vangelis com os zilhões de cortes do filme que foram amontoando na sua frente. Explico: a versão original de Blade Runner tinha quatro horas de duração. Os altos escalões da 20th Century Fox ficaram de cabelo em pé quando souberam disso. Seguiu-se uma correria contra o tempo para reduzir Blade Runner para um tamanho aceitável – algo como duas horas de duração. A conseqüência? O filme passou tempo demais na sala de edição. Vangelis era constantemente forçado a alterar suas músicas para acompanhar o passo frenético de Ridley Scott. Lá pro final do processo Vangelis se tornou beligerante, o seu caráter centralizador e intransigente não ajudando em nada.

A partir daí choveram discos piratas e versões oficiais menos que satisfatórias. Semanas antes de Blade Runner estrear, uma fita K7 circulou pela comunidade cinéfila de Los Angeles com trechos da trilha, obra de algum esperto que copiou as másters sem Vangelis notar. O lançamento oficial veio como uma trilha do New World Orchestra, em junho de 1982. Decepção geral: no lugar de Vangelis e seus eletronismos melancólicos somos obrigados a escutar uma versão orquestral brega do seu score. “Muzak para robôs,” como definiu o autor de Future Noir (1996), Paul Sammon, responsável pelo melhor livro já escrito sobre o filme. A única que se salva do álbum é o “Love Theme”, com a participação do saxofonista Tom Scott, presente nas sessões de gravação originais. Devido ao interesse gerado pelo Director’s Cut (1992), um segundo disco pirata surgiu em 1993. Com 18 faixas e uma qualidade de som irretocável, ele era o lançamento mais abrangente até então.

Foi uma dúzia de anos, mas enfim Vangelis: Blade Runner (1994) chegou. Contendo a maioria dos temas principais, as doze faixas eram pontuadas por efeitos sonoros e diálogos extraídos do filme. A segunda versão oficial da trilha obteve uma excelente resposta na Inglaterra; em seis anos o disco ultrapassou a barreira das 100 mil unidades vendidas e foi certificada com um disco de ouro em dezembro de 2000. O problema é que a trilha estava bem incompleta e as músicas estavam dispostas de um jeito que não obedecia ao desenrolar do filme. Andrew Hoy, assistente de Vangelis em Blade Runner, explica o modus operandi do compositor. Diz ele que Vangelis tem o hábito de re-inventar os seus scores, rearrumando a seqüência das músicas e adicionando faixas que não entraram no filme. Hoy afirma que isso parte de uma preocupação de Vangelis com o dinheiro do consumidor; é dessa forma que ele dá um custo-benefício compensador para quem escuta os seus discos.

O problema foi chegou perto de ser resolvido em 2007 com o Final Cut. Uma edição tripla da trilha, a Blade Runner Trilogy, acompanhou o relançamento do filme em DVD. No primeiro disco, nenhuma novidade: a trilha de 1994, remasterizada. O segundo disco é mais interessante: concentra um apanhado de cues inéditos, pelo menos oficialmente. O terceiro disco é feito exclusivamente de material novo, comemorando os 25 anos do filme. São faixas novas com inserções dos spoken words dos diretores Roman Polanski, Oliver Stone e o próprio Ridley Scott, junto com atores que participaram do filme (Rutger Hauer e Edward James Olmos). Infelizmente, Vangelis decepciona os fãs de novo: piratas mais recentes, tipo a Esper Edition (2002), continuam a ter músicas fora do Blade Runner Trilogy.

Na minha resenha de Porgy e Bess (1959), eu mencionei Blade Runner como exemplo de um filme injustiçado pela sua história convoluta. Ridley Scott, o homem que fez Alien, o 8º Passageiro (1979) e Gladiador (2000), pode tranquilamente contar Blade Runner como a jóia de sua coroa. A visão cyberpunk do filme revelou-se assustadoramente profética. Replicantes não andam entre nós – ainda – mas quanto à desastres ecológicos, superpopulação e a crescente dessensibilização ao valor da vida humana, nesse futuro já vivemos.

O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem para mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.

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