A minha primeira experiência com
o cinema de Abel Ferrara foi com “China Girl”, de 1987. Ainda que a
reimaginação da história clássica de Romeu e Julieta em uma NY segregada entre
asiáticos e italianos não seja o melhor trabalho desse diretor, é de se exaltar
a visceralidade com que Ferrara trata seu casal protagonista. O que assemelha “China
Girl” com “Vício Frenético” é o potente olhar penetrante do seu realizador.
Ferrara parece ter preferência
por invocar sentimentos conflituosos, principalmente em situações que envolvam
o underground dessa que é a maior cidade do mundo moderno. Os personagens que
constrói com carinho, em sua maioria marginais, não são “preto no branco”,
existem, e muito, tons gris. Podem ter atitudes absurdas, assim como
altruístas, mesmo que subvertidas no contexto. Em “Vício Frenético”,
considerado por muitos como seu melhor trabalho, o tenente da policia de NY
interpretado brilhantemente por Harvey Keitel pode ser um FDP de primeira
grandeza, mas também pode transmitir sentimentos sinceros (como em uma cena com
a mãe de um traficante) e ainda que acredite que sua trajetória é sem volta,
não deixa de procurar uma redenção para seus pecados.
A narrativa de “Vício Frenético”
é impulsionada pelo personagem de Harvey Keitel (sem dúvidas, sua melhor
atuação no cinema), citado apenas como o Tenente. Existem alguns fatos que
montam uma história, como as apostas absurdas em jogos de beisebol e o violento
estupro de uma freira, mostrado dubiamente e com certa dose de fetichismo.
Aqui, o cinema de Ferrara se mostra como um filme que levanta um bocado de
questões (desde ordem técnica, principalmente no uso de vistosas elipses e
enquadramentos, o que aponta ainda para um esmero visual) até reflexões sobre
humanidade. Também vejo esse trabalho como uma obra que foi ganhando vida
própria durante sua realização. Será que durante as filmagens, o diretor não
pensava em um filme diferente? Tenho dúvidas se muito do caráter reflexivo que
exala dessa realização não venha da caprichada montagem de Anthony Redman,
costumeiro parceiro de Ferrara nos anos 90.
Independente do desfecho das
situações, até porque o que importa não é o resultado e sim os meios, nos
levando pelas atitudes que montam uma trajetória infernal do cotidiano do
Tenente. Acredito que o subtexto reflexivo de “Vício Frenético” aponta para a
personalidade do Tenente como um reflexo do próprio estado em que se encontra a
NY de Ferrara: deteriorada pelas drogas, com humanidade e fé corrompidas e
contornos cada vez mais hedonistas.
O diretor pode ter até pensado em
fazer uma obra que representasse a sua amada e odiada NY, mas acabou
transcendendo a própria temática pela qual ficou marcado. Sua abordagem é
crível e atual. O Tenente existe em qualquer metrópole do mundo, espreitando
traficantes, fazendo sexo com prostitutas, negligenciando os próprios
familiares e se aproveitando da “juventude perdida”.
Ainda que recheado de temas
obscuros, infames e desonrosos, Ferrara imbui a obra de reflexões religiosas,
culminando em uma seqüência emocionante que o Tenente encontra e se defronta
com Jesus Cristo. Momentos únicos como este somente a 7ª arte pode
proporcionar. Talvez a própria narrativa de “Vício Frenético” se confunda com a
vida “torta” desse talentoso Abel Ferrara, trazendo e crivando um caráter
amplamente autoral para essa realização. Sim, um autoral sem medo de ousar e
ser criticado, mostrando um diretor com uma visão bem especifica do caráter
humano e seus caminhos tortuosos.
1 Comente Aqui! :
Ferrara é um dos realizadores mais conscientes de que se tem notícia. Sempre ousado e inovador, este aqui é meu 2° favorito dele, puta obra-prima policial.
http://avozdocinefilo.blogspot.com.br/
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