No mundo do boxe, o “sucker punch” é um golpe baixo – um soco abaixo da cintura ou pelas costas. Sucker Punch é também o título do último filme de Zack Snyder, que estreou em março desse ano. Oriundo do mercado publicitário, o diretor começou a carreira com Madrugada dos Mortos (2004), uma refilmagem do Despertar dos Mortos (1978) de George Romero. O remake desse clássico zumbi foi seguido de 300, uma adaptação do graphic novel homônimo de Frank Miller. Três anos se passam e Snyder veio com uma edição fidelíssima de Watchmen (2009), considerado o melhor HQ já escrito. Aí veio o A Lenda dos Guardiões (2010), um desenho animado baseada na série infantil de Kathryn Lasky.
Sucker Punch, o primeiro trabalho autoral do diretor, parece ter saído das páginas da Heavy Metal: e haja dragões, androides assassinos, orcs (Peter Jackson viu isso?), mulheres em trajes mínimos e muita, muita porrada. Sucker Punch também tem quê de animê: as heroínas – vestidas que nem aquelas ninfetas de hentai – são um sonho de consumo pra qualquer otaku. Vários blogueiros também notaram a semelhança de alguns quadros do filme com jogos tipo Max Payne e Call of Duty. O próprio Snyder disse para o Spinoff Online que Sucker Punch era “um videogame que nunca existiu.” Por essas e outras o Los Angeles Times deu-lhe o título de “imperador dos geeks”, para a felicidade do diretor.
Snyder vendeu o filme como uma fantasia épica que passa uma mensagem de superação e de exaltação ao poder das mulheres. Não é o que parece. Um colunista do Chicago Tribune descreveu Sucker Punch como "uma coleção sebosa de fantasias de estupro e vingança". Snyder respondeu seus críticos afirmando que simplesmente deu ao público o que ele queria – sexo e violência. Tarados éramos nós e a nossa miopia moral, que enxergamos o filme desse jeito torpe e simplório. Eis o porquê do título, o “golpe baixo” do diretor.
Apesar de tecnicamente impecável, a “direção Transformers” de Snyder revela os seus pontos fracos em Sucker Punch: interpretações inócuas e um roteiro mambembe. Quanto à primeira, basta ver como a pobre Baby Doll (Emily Browning) continua com aquela mesma cara de bunda o filme inteiro, mesmo depois de virar uma super-heroína-ninja-stripteaser. Quanto ao último, tente acompanhar as viagens desconexas da protagonista, uma mistureba porra-louca de referências pop / gamemaníacas. Fora isso, tenho que mencionar o plano de fuga de Baby Doll, que é uma das coisas mais bobas que eu já ouvi nos últimos tempos.
Há quem considere Jack Snyder um visionário por causa das adaptações visualmente ricas de 300 e Watchmen. Caso seja, Snyder é uma visionário caolho, pela metade. A sua direção espetaculosa é análoga à falácia lógica do style over substance – se ele conseguir distrair o público tempo o suficiente com seus floreios CG, quem sabe eles não notem que debaixo dessa superfície lustrosa se esconde um amontoado de... Enfim, acho que nem amontoado tem. Falta à Sucker Punch uma história boa para guiar a sua imaginação visual delirante.
Mesmo quando o filme não convence, a sua trilha pode servir de plataforma para experimentos intrigantes. Uma Jogada do Destino (1993) reuniu a nata do rock alternativo (Pearl Jam, Sonic Youth, Faith No More) com os DJs e MCs do Cypress Hill, Run-DMC e De La Soul. Apesar de o rap rock ter caído no ridículo, reunir todos esses artistas num só disco – e ainda fazendo-os colaborar – é um feito que beira ao inacreditável. Happy Walters e Glen Brunman, co-responsáveis por conseguir essa proeza, atacaram de novo em Spawn – o Filme (1997). Apesar de Spawn ser trash – e não daquele jeito John Waters de ser – ele reuniu o Silverchair, Metallica, Rage Against the Machine e Marilyn Manson (entre outros) com luminares da música eletrônica. Em Spawn, ela é bem representada nas suas diversas tendências: drum ‘n’ bass (Goldie e Roni Size), trip-hop (Sneaker Pimps), big beat (Prodigy e o Crystal Method), ambient house / techno (Moby e Orbital) e até illbient (DJ Spooky). O metal industrial do Ministry, Nine Inch Nails e White Zombie ainda era popular nessa época, e Spawn levou a fusão deles entre o rock e a música eletrônica um passo à frente.
Além de admitir a influência da Heavy Metal no roteiro de Sucker Punch, Snyder revelou numa entrevista para o EAsylum que tinha o plano de fazer a trilha sonora se portar como a espinha dorsal da história, citando Moulin Rouge – Amor em Vermelho (2001) como modelo. No filme, a música é o gatilho para entrarmos no mundo de fantasia de Baby Doll, onde ela se desliga da realidade através da dança (da qual nunca vemos). Snyder delegou a seleção musical para Marius de Vries e Tyler Bates; eles sugeriam canções que estivessem no clima do filme, e o diretor dava a palavra final. À primeira vista, Bates e de Vries montaram um tracklist irretocável. São oito covers mais uma colaboração entre Björk e Skunk Anansie. Entre os "coverizados", Stooges, Pixies, Beatles, Roxy Music e The Smiths.
Comecemos pelo começo (senhora redundância): a primeira faixa, uma versão de “Sweet Dreams (Are Made of This)” na voz de Emily Browning. Essa música foi lançada originalmente pelo Eurythmics em 1982; ela foi um dos grandes hits da era synthpop. Segundo a biografia da cantora do grupo, Annie Lennox, a letra fala da sua visão “realista” da vida, os altos e baixos inerentes ao dia a dia e de que temos que sobreviver á qualquer custo para realizar os nossos sonhos. Numa das estrofes, Lennox lista os tipos de pessoas que encontramos no caminhar da vida (“Some of them want to use you / Some of them want to get used by you / Some of them want to abuse you / Some of them want to be abused”).
Snyder faz uma leitura ora irônica, ora literal de "Sweet Dreams". A parte da ironia é o contraste da música com a morte da mãe de Baby Doll, e a parte literal (“some people want to abuse you”) é a música do quase-estupro que Babydoll sofre nas mãos de seu padrasto pervertido (Gerard Plunckett). Assim como nas outras músicas da trilha, Snyder toma o que elas dizem (“some people want to abuse you”) de forma literal. No departamento musical, um coral quase gregoriano é condizente com a cena da morte e do velório da mãe de Baby Doll; depois disso, "Sweet Dreams" ganha uma roupagem techno-rock.
Já internada no asilo sob a vigilância severa de Blue Jones (Oscar Isaac) e à dias de sua lobotomia, Baby Doll começa a fantasiar um mundo onde ela tem as ferramentas para fugir do Lennox House, o sanatório onde foi confinada pelo abominável padrasto. Numa de suas divagações mentais, Baby Doll conhece o seu "anjo da guarda" (Scott Glenn), um arquétipo de "velho sábio" que andou lendo Quem Mexeu no Meu Queijo? demais. Depois de Baby Doll tomar uma bicuda tamanho Godzilla do primeiro samurai, ouvimos "Army of Me" de Björk na versão do Skunk Anansie, uma banda da qual eu tenho grande simpatia. No auge do britpop, o Skunk Anansie era a maior banda de rock pesado das ilhas britânicas, e o grupo tinha um diferencial: Skin, uma frontwoman negra, feroz na sua denúncia contra o fanatismo religioso (“Selling Jesus”, sampleada pelo Prodigy em “Serial Thrilla”) e abuso infantil ("Charlie Big Potato"). "Army of Me" começa fiel à versão original, até que no último minuto Skin abre o berreiro e a música cai num frenesi speed metal. Na primeira audição, soou estranho. Não me acostumei ainda, a ponto de decidir se gostei ou não.
Segundo o site da própria Björk, a letra de "Army of Me" é sobre ela lutar pelo o que é seu e não deixar ninguém se aproveitar do seu talento. A imaginação concreta de Zack Snyder toma as rédeas novamente; ele transforma “Army of Me” na música de fundo de uma luta homérica entre Babydoll e três samurais gigantes. Detalhe: um deles carrega uma bazuca e uma metralhadora de helicóptero a lá Rambo 2 - A Missão (o pai do bushidô deve estar se revirando na cova). Quer dizer, o qual é a conexão de uma garota internada num hospital psiquiátrico dos anos 1960, um personagem que Stallone emprestou o rosto na década de oitenta e samurais medievais? Não há nada no roteiro de Sucker Punch que justifique essa associação livre maluca. Esses saltos de lógica podem servir para um videogame – onde o estímulo sensorial é mais importante do que a consistência da história – mas para um filme? Tenho minhas dúvidas.
O Skunk Anasie aparece de novo em "Search and Destroy", hino dos anti-heróis do proto-punk, o Stooges. Comparada à versão do Raw Power (1973), ela soa meio domesticada, a crueza anti-social da original recalcada por uma produção polida. Além do quê, “Search and Destroy” é um cover “cansado”. Os Red Hot Chili Peppers gravaram a exatos vinte anos essa música para um lado-B de “Suck My Kiss”. O nível de energia dos Peppers tocando essa música ao vivo, exibida aqui num show transmitido pela MTV em 2002, deixa a versão do Skunk Anansie no chulé.
Tem também “Tomorrow Never Knows”, do Beatles. Sua letra foi inspirada por The Psychadelic Experience (1964), escrito pelo guru do LSD, o falecido Timothy Leary. Meio inspirada nas técnicas de meditação do budismo tibetano, o livro é uma espécie de guia para conduzir uma viagem de ácido. Nem deu o primeiro minuto da música e eu pensei, “Peraê... Eu já ouvi isso antes." Dei uma “bizoiada” nos meus CDs (sim, ainda coleciono esses disquinhos primitivos) e eureka: lá estava “Let Forever Be” do Chemical Brothers. Vejam bem: não estou dizendo que a versão de Sucker Punch é ruim. Longe disso. Só perde um pouco da graça sacar a referência sonora da cantora Alison Mosshart e da multi-instrumentalista Carla Azar tão prontamente.
A trilha tem outros destaques: "Where is My Mind" do Pixies (pra quem viu Clube da Luta, é essa a música do final) e "Asleep" do The Smiths. O disco encerra com uma versão de cabaré de "Love Is the Drug" do Roxy Music, a banda original de Brian Eno, eterno produtor do U2 e pai da ambient music. (Eu fiz uma resenha de uma trilha dele aqui pro blog.)
Em Sucker Punch, Zack Snyder mantém a estética graphic novel de suas produções passadas. Isso não é um problema, per se. Sin City (2005), dirigido por Robert Rodriguez, usou os quadrinhos de Frank Miller como storyboard – e o resultado foi fantástico, um primor de direção. Outra: quadrinhos são um meio comprovado para histórias ricas e palco de reflexões adultas e maduras. Os HQs de Will Eisner, Enki Bilal e Neil Gaiman provam isso. Não é o caso de Snyder, que foca no lado mais juvenil do meio, naquele estereótipo de mulheres duronas e impossivelmente gostosas a lá Sara Pezzini de Witchblade. A justificativa de Snyder para fazer essa fantasia sexual nerd superproduzida é o tal “sucker punch”, o golpe sujo que ele aplicou num público desprevenido, revelando as suas taras secretas. Suspeito, no entanto, que o tiro saiu pela culatra e Snyder deu esse (literalmente) “murro de otário” foi nele mesmo.
Diz-se no meio hollywoodiano que uma trilha eficiente pode salvar um filme. Imaginem Psicose sem a música de Bernard Hermann? Ou Tubarão sem a trilha de John Williams? Sucker Punch foi um fracasso de bilheteria, mal recuperando o seu orçamento de blockbuster (US$ 89 milhões). A trilha organizada por Bates e de Vries não chega a salvar a pátria, mas é o exemplo de um projeto bem executado. Infelizmente a trilha de Sucker Punch deve ter o mesmo destino das de Uma Jogada do Destino e Spawn: um disco memorável a serviço de um filme dispensável.
O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.
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