Crítica: Tubarão (trilha sonora)

6 de outubro de 2011 1 Comente Aqui!


O verão chegou. Praia, suor, sol, surf, aquela cervejinha gelada. O calor pede um banho de mar, não é verdade? E lá vão todos, se atirar dentro d'água.

A sete quilômetros dali, um Tubarão Branco sentiu uma agitação na água. Ele parte para investigar a fonte e, a 1 km de distância, sua audição extremamente aguçada consegue discernir os mínimos sons de sua futura presa – inclusive a batida do seu coração. E azar de quem se cortou antes de cair no mar: um Carcharon carcharias fareja uma gota de sangue em 100 litros de água. Furtivo, o tubarão se aproxima, e quando a temida barbatana quebra a superfície já é impossível fugir. Pra vocês terem uma idéia, um Tubarão Branco nada até 24 km/h, enquanto Michael Phelps, o recordista olímpico, chega até 7,6 km/h. No bote, além dos três mil dentes serrados cravados na pele, a vítima sentirá o peso de uma mordida de 1,8 toneladas esmagando seus ossos...

Corta a cena. O ano é 1975 na Amity Island, um balneário da Costa Leste americana. Justo na véspera do feriado – o 4 de Julho, o Dia da Independência deles – a ilha se vê à mercê de um tubarão assassino. O chefe de polícia, Martin Brody (Roy Schneider), quer interditar as praias, preocupado com a segurança dos banhistas. Ele tem que mostrar serviço, já que é o seu primeiro verão na ilha. O prefeito, Larry Vaughn (Murray Hamilton), representa os interesses ilhéus. Os comerciantes quererem abafar o caso, preocupados como estão em afugentar os dólares turistas caso a notícia se espalhe. Brody recruta o oceanógrafo Hooper (Richard Dreyfuss) e um marinheiro casca-grossa, Quint (Robert Shaw), para ajudá-lo a caçar esse “leviatã” aquático. E lá vão os três para o alto-mar, enfrentar o predador perfeito: sete metros e meio e 3 toneladas dele.

Como a maioria das produções que fizeram história, Tubarão foi uma complicação tamanho família. Os produtores da Universal Pictures, David Brown e Richard Zanuck, deixaram a empolgação falar alto ao comprar os direitos do livro de Peter Benchley. Eles não calcularam a que ponto as condições climáticas e os regulamentos draconianos de Martha’s Vineyard – uma comunidade pesqueira, locação de Tubarão – iriam interferir no andamento do filme, transformando os sete meses alocados para Tubarão numa tortura. Às vezes um dia inteiro no mar rendia míseros seis segundos aproveitáveis de película – quando rendiam alguma coisa. “Se tivéssemos [o] lido duas vezes, em minha opinião, nunca teríamos feito Tubarão,” avalia Brown. “Fazer o filme foi um misto de coragem e estupidez,” relembra Steven Spielberg, então um menino prodígio de 26 anos a dirigir o seu primeiro arrasa-quarteirão.

Uma fonte inesgotável de estresse no set foi o funcionamento precário do tubarão mecânico, “Bruce” (uma homenagem de Steven Spielberg ao seu advogado, Bruce Ramer). “Bruce” foi motivo de inumeráveis perrengues entre Steven e a sua equipe técnica, carinhosamente apelidada pelo diretor de seu “departamento de defeitos especiais”. No término das filmagens Spielberg teve um ataque de pânico, temendo um motim.

Spielberg escapou ileso e Tubarão devorou a concorrência um a um. Bateu os recordes de O Exorcista (1973), Um Golpe de Mestre (1973), E o Vento Levou (1939), A Noviça Rebelde (1965) e por fim O Poderoso Chefão (1972) do amigo de Steven, o diretor Francis Ford Copolla. Tubarão foi o primeiro filme a superar a marca de US$ 100 milhões em bilheteria, inaugurando assim a era dos blockbusters.

Décadas depois, Spielberg atribuiu “metade do sucesso do filme à música” de John Williams. David Brown percebeu a importância do score do compositor quando exibiu um corte de Tubarão sem o acompanhamento musical, para os executivos da Universal. A reação foi morna. Já a pré-estréia de Dallas, com a trilha no seu devido lugar? Outros quinhentos: gente desmaiando, pulando de susto, gritando sem parar... Um pandemônio de gerúndios! No ano seguinte, Tubarão abocanhou os grandes prêmios da categoria: o Oscar, o Globo de Ouro, o BAFTA e um Grammy. Um atestado do spotting eficiente de John Williams.

Existe um episódio anedótico ligado ao famoso tema do tubarão. Quando chegou a hora de mostrar o tema para Steven Spielberg, John Williams se acomodou ao piano e tocou só duas notas: Mi e Fá, alternando-se obsessivamente, tocadas nas teclas mais graves do instrumento. Isso, tecnicamente, é conhecido como basso ostinato: uma frase musical repetida sem parar numa mesma altura, executada pelos elementos mais graves da orquestra, geralmente pelos instrumentos de corda (violoncelos ou contrabaixos). A idéia por trás de tamanha simplicidade era caracterizar uma criatura movida por nada além do instinto, implacável na sua sede de sangue. Fora isso, o andamento do tema sinaliza o frenesi do tubarão; quando ele se aproxima da vítima, a música dispara. Ao ouvi-lo da primeira vez, Spielberg riu na cara do compositor, achando o tema “simples demais.” Atento como é à arte de fazer cinema, Steven se corrigiu, acrescentando: “As melhores idéias são as mais simples.”

Uma decisão inteligente feita por Spielberg – até porque “Bruce” quebrava toda hora – foi a de manter o tubarão fora de vista. Williams se aproveita do tema principal nos avisar quando tubarão estivesse nas redondezas – mesmo que implicitamente. “O que não se vê é mais assustador”, diz o diretor, e com todo estrago que fez em Amity, nós realmente começamos a ver a “cara” do tubarão só nos últimos 40 minutos do filme.

Depois de condicionar a platéia com o "tema do tubarão", Williams passa a fazer uma brincadeira de gato e rato. É o que acontece quando os três homens estão á bordo da Orca, o barco de Quint. Brody está distraído, conversando com o marujo irlandês e jogando salmão no mar quando o tubarão aparece, subitamente. Estupefato, o xerife recua pra dentro da cabine e lança a sua famosa frase: we’re gonna need a bigger boat (“nós vamos precisar de um barco maior”). Como muitos diálogos memoráveis de Tubarão, esse surgiu fora do script.

Após ter visto o copião de Tubarão, John Williams ligou para Steven Spielberg para passar as suas primeiras impressões. Disse para o diretor que o filme precisava de “música de pirata” – algo visceral e ao mesmo tempo divertido. Tomo como exemplo a caçada de Brody e Quint ao tubarão, onde John Williams se vale uma fanfarra heróica; “Korngoldiana” é a palavra que ele usou. O comentário faz referência a Erich Wolfgang Korngold (1897-1957), compositor austríaco radicado em Hollywood. A sua especialidade dele eram os swashbuckers, filmes de ação com lutas de espada elaboradas, tendo como heróis piratas ou espadachins a lá Os Três Mosqueteiros. O seu As Aventuras de Robin Hood (1937), pelo qual Korngold ganhou um Oscar, foi um marco no gênero. O estilo de orquestração de Korngold admitidamente marcou outras produções de Williams, a exemplo do clássico Guerra nas Estrelas (1977).

Segundo John Williams, é durante essa perseguição ao tubarão, num momento de aparente triunfo, que ele compôs o seu trecho favorito da trilha. Quando a tripulação do Orca percebe que o plano de Quint falhou – o tubarão consegue submergir, mesmo com três boias fincadas nas suas costas – a música “murcha”. A decepção do trio toma corpo quando Williams desacelera a orquestra e instrui seus trompetistas a transpor as melodias de fanfarra intrépida para tons mais graves.

Hoje se sabe que muita coisa que Peter Benchley escreveu sobre o terror dos sete mares é pura ficção. A “Morte Branca” raramente ataca gente (os tubarões não gostam de carne humana) e dificilmente eles chegam ao tamanho daquele monstro marinho imortalizado por Spielberg... Mas uma coisa é certa: o diretor e John Williams fizeram pro mar o que Herrmann e Hitchcock conseguiram para a cena do chuveiro em Psicose (1960): uma poderosa simbiose entre imagem e som que entrou para a história do cinema.

E isso, caríssimos, é pura verdade.

O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem para mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.


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