Crítica: Flash Gordon (trilha sonora)

8 de setembro de 2011 0 Comente Aqui!

Em 7 de Janeiro de 1934, os Estados Unidos ainda se recuperava da Grande Depressão e acompanhavam a vida política da Europa com apreensão. Grupos religiosos, especialmente os de judeus e protestantes, já denunciavam a perigosa ascensão do chanceler Adolf Hitler ao poder na Alemanha. Entre uma guerra iminente e a crise econômica, o cidadão comum tinha de aliviar as tensões do dia-a-dia de algum jeito. Além das válvulas de escape de sempre (sexo, drogas e jogatina), a diversão escapista oferecida pelas tirinhas dominicais e pelas revistas pulp vieram a calhar. (Os pulps eram publicações baratas especializadas em contos de terror, fantasia e ficção científica). Foi também essa data, 7 de Janeiro de 1934, em que William Randolph Hearst – o magnata da comunicação que inspirou Cidadão Kane (1941) – escolheu para publicar Flash Gordon. Lançado para concorrer com Buck Rodgers, Flash Gordon foi um hit instantâneo, graças às tramas engenhosas e o traço formidável do seu criador, Alex Raymond.

As historietas de Flash Gordon capturaram a imaginação do jovem Dino de Laurentiis, um italiano fanático por quadrinhos. Depois da Segunda Guerra, Dino largou o negócio de espaguete do pai e se aventurou no mundo do cinema, onde virou um produtor de peso. Ele vistoriou pessoalmente desde Veludo Azul (1986) de David Lynch a todos os filmes baseados no infame (e genial) Hannibal Lecter, exceto O Silêncio dos Inocentes. Era 1979 quando Dino quis filmar Flash Gordon, parte de um tributo nostálgico aos HQs americanos que lia em Nápoles, revisitados em produções como King Kong (1976) e Conan o Bárbaro (1982) que alçou Arnold Schwarzenegger à fama. O ímpeto de fazer Flash Gordon também veio do sucesso de Guerra nas Estrelas (1977), uma cria desse universo pulp interplanetário.

Em abril de 1979 o empresário do Queen, Jim Beach, propôs a Dino de Laurentiis que seus clientes fizessem a trilha sonora do seu novo filme. O Queen já vinha conversando com a imprensa sobre a possibilidade de investir seus consideráveis dotes musicais no cinema, e aquela pareceu a oportunidade certa de pôr seus planos em prática. O produtor sexagenário hesitou por um momento – ele nunca tinha ouvido falar da banda – e depois abraçou a idéia. A veia kitsch de Flash Gordon, que vai da canastrice do elenco até seus sets extravagantes (feitos por Danilo Donati, diretor de arte de Federico Fellini), agradaram em cheio Brian May, o guitarrista do Queen. Dada como a banda sempre foi à teatralidade e ao deboche, isso não é lá grande surpresa. O Queen começou a trabalhar na trilha de Flash enquanto finalizavam The Game (1979), conhecido pelos hits “Another One Bites the Dust” e “Crazy Little Thing Called Love”.

Flash Gordon foi o primeiro disco do Queen a usar sintetizadores em larga escala – nesse caso, o recém-lançado Oberheim OB-X, um teclado top de linha comprado pelo baterista do grupo, Roger Taylor. Essa tendência já se consolidando discretamente no The Game. Antes dele, a frase “nenhum sintetizador foi usado nesse álbum” vinha impressa no encarte dos discos. Taylor justificava esse aviso dizendo que era uma forma da banda se policiar, evitando truques de estúdio ou trazer músicos de fora para as gravações. Na verdade, essa advertência era um recado para os executivos da gravadora. Eles viviam se confundindo com as guitarras de Brian May que, gravadas e sobrepostas em múltiplas camadas, pareciam com um sintetizador (para ouvidos incautos deles). Podemos escutá-las no tema de Flash, no rockão bombástico de “Battle Theme” e em “Wedding Theme”, uma paródia de “Treulich Geführt”, famoso tema de casamento da ópera de Richard Wagner, Lohengrin (1850).

Ouvindo Flash Gordon, fica evidente que quem realmente tirou proveito do Oberheim foi Freddie Mercury, a julgar pelas músicas que fez para a trilha. A primeira é “Ming’s Theme”, o tema do vilão interpretado por Max Von Sydow, imortalizado em papéis como o templário errante de O Sétimo Selo (1957) de Ingmar Bergman ou o Padre Merrin em O Exorcista (1973). A próxima, “The Ring”, acompanha o imperador Ming hipnotizando a mocinha do filme, Dale Arden (Melody Anderson). Em “Football Fight”, Flash Gordon (Sam Jones) pega o seu talento de quarterback e faz um boliche humano com os soldados de Ming. Independente dos fatores que levaram à predominância de recursos eletrônicos em Flash – a empolgação com um brinquedo novo? – os sintetizadores combinam com o clima sci-fi pastelão do filme. Querendo ou não, Flash Gordon faz parte de uma linhagem iniciada em O Dia em que a Terra Parou (1951), onde Bernard Herrmann – o compositor favorito de Alfred Hitchcock – introduziu os sons de outro mundo do teremim ao grande público. A música eletrônica e os filmes de ficção científica ficaram associados desde então.

O uso de sintetizadores não é a única novidade na trilha de Flash Gordon; ele foi também o primeiro disco do Queen a incorporar uma orquestra. Regida por Howard Blake, ela aparece em “The Kiss” e na faixa final, “The Hero”. No seu site oficial, Blake conta que só teve uma semana e meia pra completar a trilha. Na reta final do processo encarou uma maratona de 4 noites passadas em claro. Terminado o serviço, Blake dormiu direto por três dias devido à exaustão e sua bronquite crônica. O seu sono reparador facilmente teria virado coma se não fosse pela mulher e o médico que ela chamou, para acordá-lo.

Apesar do desempenho pífio do filme nas bilheterias americanas, a trilha de Flash foi bem recebida na Grã-Bretanha. Ela foi indicada na categoria “Best Film Music” do BAFTA (perdeu para O Império Contra Ataca) e a legião de fãs do Queen no país garantiram as vendas de 100 mil cópias de álbum (equivalente a um disco de ouro). Uma conquista importante para uma banda que os jornalistas, na época, adoravam odiar...

Mesmo bem-sucedida como trilha sonora, Flash Gordon é considerado a ovelha negra da discografia do Queen. Flash é um disco 80% instrumental com apenas um hit moderado (a faixa-título, top-10 na Inglaterra). Ele foi ofuscado pelo álbum anterior, The Game, o disco do Queen que mais vendeu nos EUA e o Greatest Hits (1981), o álbum mais vendido da história do Reino Unido. O Queen se aventuraria de novo na 7º arte com A Kind of Magic, que trazia "One Vision" do filme Águia de Aço (1986) e uma parcela considerável da trilha escrita para Highlander – O Guerreiro Imortal (1986). É dela que vem a balada “Who Wants to Live Forever”.

Passadas três décadas, Flash Gordon chega a nós como um dos exemplos mais bem acabados dos scores roqueiros da década de 1980. Ele compete lado a lado com o lírico Momento Inesquecível (1983) de Mark Knopfler, guitarrista do Dire Straits, ou o ultra-popular Footloose – Ritmo Louco (1984). A receita rock + cinema sempre foi arriscada, produzindo alguns clássicos (o Beatles com o seu Os Reis do Iê Iê Iê) e outras tantas pedradas (a filmografia de Elvis vem à cabeça). Até que o Queen fez essa fórmula funcionar, concordam?

O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.

0 Comente Aqui! :

 
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...