Crítica: Feitiço Havaiano (trilha sonora)

5 de maio de 2011 0 Comente Aqui!

“Histeria coletiva” era o diagnóstico do doutor Carl Jung. “Veneno posto em som” para os ouvidos do violoncelista Pablo Casals. “A marcha militar de todo delinqüente de costeletas na face da Terra”, declarou Frank Sinatra. Mas afinal do que tanto eles reclamavam? Parafraseando Rita Lee, era sobre “esse tal de rock ‘n’ roll”, um coquetel sonoro de blues, gospel e country acelerado por doses generosas de anfetamina. Aquela música vibrante e obscena – capitaneada por Buddy Holly, Chuck Berry e Jerry Lee Lewis – era vista pelos pais da era Einsenhower como um ataque frontal à moral e aos bons costumes. E tinham aquelas letras, carregadas de duplo sentido, onde abundavam referências a carrões, garotas, passos de dança e sexo, sexo, sexo. No centro dessa reviravolta cultural estava um moleque caipira, de voz barítona, cheio de gingado e malícia. Um garoto do Mississipi que um dia se tornaria “O Rei” – Elvis Presley.

Mas, lá pelo fim de mil-novecentos-e-cinqüenta o rock ‘n’ roll já era. Jerry Lee Lewis arruinou sua carreira quando casou com a prima de 13 anos, Myra Gale. Chuck Berry vai preso, acusado de ter relações indevidas com uma garçonete adolescente. Em fevereiro de 1959, Buddy Holly morre num acidente de avião junto com Richie Valens, o cantor de “La Bamba”. E Elvis foi servir o exército, convencido de que sua carreira tinha terminado.

O empresário de Elvis, o “Coronel” Tom Parker, não ia deixar o "ganso de ouro" desmantelar seu esquema lucrativo assim tão fácil. Ele manteve o nome do seu cliente nas manchetes durante os dois anos que Elvis passou fora, na Alemanha, enquanto tramava a volta triunfal do rei do rock. Assim que Elvis aterrissou em Memphis, o Coronel pôs em prática o seu plano de fazê-lo lançar um disco e um filme por ano. Diversão garantida em escala industrial. É nessa fase que Feitiço Havaiano (Blue Hawaii, 1961) vem à tona.

Não que Elvis “the Pelvis” reclamasse da sua rotina puxada naquele momento. Ele adorava o Havaí. Desde o seu primeiro show no arquipélago, em 1957, o “Rei” manteve um caso de amor duradouro com o 50º estado americano, tornando-se com o tempo a sua segunda casa. O astro foi generoso com os havaianos: sempre destinava parte da renda de seus shows para as instituições de caridade locais e seus filmes – Feitiço Havaiano entre eles – botaram o Havaí na rota do turismo internacional. Mais tarde, a Arena de Honolulu foi palco da apresentação mais importante do cantor: Aloha From Hawaii (1973), a primeira transmissão mundial via satélite de um espetáculo, com o público estimado em 1 bilhão de pessoas.

Em Feitiço Havaiano acompanhamos as aventuras do Sargento Chadwick “Chad” Gates (Elvis), que volta para casa depois de servir dois anos no exército. (Déjà vu?) No aeroporto ele é recebido pela saudosa namorada, Maile Duval (Joan Blackman). Mas o retorno de Chad é para um lar, agridoce lar; ele foge de seus pais, que estão prontos pra lhe enquadrar. A mãe, Sarah Lee (Angela Lansbury), quer que Chad largue seus amigos “vagabundos” e sua “namoradinha nativa” e passe a freqüentar a alta sociedade polinésia. O pai, o sisudo-porém-afável Fred (Roland Winters), quer que o filho assuma a vice-presidência da Great Southern Hawaiian Fruit Company, uma potência no segmento de cultivo e venda de abacaxis. Chad tem que enfrentar o preconceito da mãe e as cobranças do pai, e ainda arrumar tempo para construir o futuro com suas próprias mãos. É um retrato familiar para a maioria dos fãs de Elvis, a geração que viveu a explosão do rock ‘n’ roll.

Quando Chad finalmente resolve deixar seus dias de sombra e água fresca para trás, Maile arranja um emprego pra ele numa agência de turismo, e lá vai Chad ciceronear uma professora (Nancy Walters) e suas quatro alunas adolescentes. Aí está o velho Elvis com seu indefectível topete, arrasando corações enquanto mostra os cartões postais do Aloha State. Durante o Feitiço Havaiano, ele se envolve numa briga de bar, vai preso, é demitido pelo chefe e briga com a namorada, mas, no fim, tudo dá certo. Ele se casa com Maile, monta seu próprio negócio e ganha a aprovação dos pais.

Como era de se esperar, a história de Feitiço Havaiano é bobinha: garotas bonitas, (pouco) rock ‘n’ roll e as estonteantes belezas naturais do Havaí servindo de cenário. É o tipo do filme talhado para ser odiado pela crítica, mas a presença de Elvis em Hollywood era garantia de lucro. Então...

De qualquer forma, Blue Hawaii foi um marco na carreira de Elvis. Além de passar um tempo-recorde de 20 semanas no topo das paradas da Billboard, Blue Hawaii foi o álbum dele que mais vendeu enquanto vivo. Foram mais de 3 milhões de cópias só nos EUA. O compacto lançado para promover o disco – Can’t Help Falling in Love – também foi um sucesso, vendendo 1 milhão de cópias. A cereja no topo do sundae foi a indicação ao Grammy de Melhor Trilha Sonora do ano.

Mostrando uma enseada paradisíaca e um céu pra lá de límpido, Feitiço Havaino começa aos acordes de “Blue Hawaii”, versão de Elvis para uma música da comédia Amor Havaino (1937). Originalmente um hit nas mãos de Bing Crosby, é famosa pelo seu refrão (“Dreams come true / In blue Hawai’i”). Outras regravações notáveis são as de “Aloha ‘Oe” e “The Hawaiian Wedding Song”, clássicos do cancioneiro havaiano. E aquele amigo da Rita Lee, o tal do “Roque Enrow”? Se for ele que vocês querem, vão sair com a mão abanando. Das quatorze canções da trilha, a que mais chega perto do rockabilly que fez Elvis famoso é “Slicin’ Sand”. Por sinal, muito parecida com “Rock Around the Clock” do Bill Haley & His Comets, o primeiro grande hit do rock ‘n’ roll.

Elvis e sua troupe não fazem feio quando decidem explorar a música polinésia. Patente por toda trilha está uma invenção legitimamente havaiana: a guitarra slide, tão intrínseca à música norte-americana. Ouvímo-la no country, no blues e em alguns clássicos do rock como “Layla”, do Derek & the Dominos (uma das bandas de Eric Clapton montou depois do Cream ter terminado). Outros instrumentos também se fazem presentes. Em “Hawaiian Sunset” e na balada “Ku-U-I-Po”, Elvis aproveita para “arranhar” o uquelele, um descendente polinésio do nosso cavaquinho. Noutra ocasião, Elvis chacoalha um instrumento de percussão típico das ilhas, os ipus. São suas sacolejadas que ouvimos em “Rock-A-Hula”, escrita na última hora para capitalizar em cima da onda twist que varria os Estados Unidos.

Para o neófito, investigar a discografia do “Rei” é um tremendo desafio. São mais de 100 singles e 74 álbuns, dos quais 19 são trilhas sonoras. E desse tanto boa parte não presta. Se o esquema de produção taylorista do Coronel pós-Elvis-no-exército trouxe lucro imediato, o efeito colateral foi produzir várias pedradas, despejando no mercado toneladas de discos de gosto duvidoso. Feitiço Havaiano – pelo menos no departamento musical – se sobressai do restante. Para os mais roqueiros, Blue Hawaii talvez apresente um Elvis Presley mais dócil do que aquela selvageria dos seus dois discos homônimos. Ponto inconteste. Independentemente disso, Blue Hawaii continua sendo um ponto importante da carreira de Elvis, uma trilha que merece ser escutada e apreciada com a devida atenção.

O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.

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