Resenha de Filme: Spawn (trilha sonora)

11 de abril de 2013 0 Comente Aqui!

Duas décadas atrás o universo dos quadrinhos deu uma guinada coletiva para o sombrio e realista. Talvez tenha sido a revolução iniciada nos anos 1980 pela subsidiária "adulta" da DC Comics, a Vertigo, que lançava um título brilhante atrás da outro. Temos como exemplos “V de Vingança”, a paródia do governo repressor da recém-falecida Margareth Thatcher, escrita por Alan Moore e adaptada para o cinema pelos Irmãos Wachowski. A desconstrução radical do mundo super-herói pelo mesmo autor, “Watchmen”, foi ainda mais influente. Seja como for, a corrente “mainstream” dos HQs logo sentiria o impacto dessas mudanças. Doomsday, a máquina mortífera, trucidou o Homem de Aço em “A Morte do Super-homem” (1992). Um ano depois Bane quebrou a coluna de Batman, história reproduzida em parte no filme Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012).

No meio desse caos e redefinição surge um novo (anti)-herói nos HQs: Spawn. Spawn é cria de Todd McFarlane, que fez fama como ilustrador de Homem Aranha, mas resolveu fundar a sua própria companhia, a Image Comics. McFarlane construiu um império em cima de seu personagem principal: o primeiro número de Spawn foi um dos títulos mais vendidos da história do meio e, cinco anos depois do lançamento da série, a franquia tinha vendido 8 milhões de revistas ao redor do mundo.

Antes de virar um soldado do inferno Spawn era Al Simmons, o assassino mais condecorado do governo dos Estados Unidos. Al Simmons acaba sendo traído por Jason Wynn, diretor da CIA, e Al vai diretamente para o inferno devido ao seu currículo sangrento. Malebolgia, senhor do oitavo círculo do inferno, oferece um pacto à Simmons: caso possa ver a sua mulher, Wanda, mais uma vez, ele aceita virar um Hellspawn. Al – agora o desmemoriado Spawn – é cuspido das profundezas cinco anos depois. Cruel ironia: ele descobre que Wanda está feliz da vida casada com o seu melhor amigo, Terry Fitzgerald, que a deu uma filha, coisa que o estéril Al nunca conseguiu. Fora essa dor de corno infernal, Spawn tem que conviver com Violator, um palhaço diabólico que fica de olho nele para garantir que cumpra o seu pacto com Malebolgia.

Spawn, o filme, infelizmente não captou aquele inominável elemento X que fez dos quadrinhos um fenômeno de vendas ou a sua adaptação para a HBO ganhar um Emmy. Pensem num filme B – alias, “B” não, “Z” mesmo –, cheio os piores momentos dos filmes de ação dos anos 1980: diálogos ridículos, personagens unidimensionais, culhudas mil; tudo isso temperado com efeitos especiais sofríveis. Exemplo disso é Malebolgia, o “chefe” de Spawn, renderizado num CGI tão tosco que fará qualquer um virar a cara quando ele aparecer – não de horror, mas por vergonha alheia mesmo... Até bons atores como Martin Sheen e John Leguizamo são subutilizados, vitimados por interpretações forçadíssimas.

Existe um ditado em Hollywood que diz que uma boa trilha sonora salva um filme. Spawn prova como é mentirosa essa máxima. Ao contrário: o filme prejudica essa trilha sonora excelente, que merece ser ouvida à parte do filme. O produtor executivo do disco, Happy Walters, o responsável pela igualmente excelente trilha de Uma Jogada do Destino, teve a seguinte ideia: fazer colaborações entre grupos de heavy metal e rock alternativo com artistas de dance music – ou "electronica", o termo hipster de então. O elenco é deveras digno: Metallica, Korn, Marilyn Manson, Silverchair, Slayer, Incubus e Filter (entre outros) e, do outro, Moby, The Prodigy, Goldie, Roni Size, Crystal Method e o Dust Brothers.

“Ora”, alguém pode indagar, “e por acaso essa parceria entre o rock ‘n’ roll e música eletrônica é novidade?!” Corretíssimo esse questionamento. Os Beatles já tinham feito experimentos com a música eletroacústica de Karlheinz Stockhausen (1928-2007) em "Revolution #9", faixa do chamado "White Album" (1968). Na década seguinte dezenas de grupos alemães do chamado krautrock borraram as fronteiras entre dois mundos – a música popular e a música eletrônica de vanguarda, acadêmica –, gerando pioneiros da música eletrônica como o Kraftwerk e o Tangerine Dream. No final da década de 1980 e começo da de 1990 tivemos a explosão do rock industrial, impulsionada por grupos como Godflesh, Ministry, KMFDM e Nine Inch Nails. Eles mostraram que samples, loops e baterias eletrônicas servem pra fazer um rock tão agressivo quanto qualquer banda de punk ou metal.

Mas a “electronica” nascida das raves, paraísos artificiais em meio aos anos de chumbo da Primeira Ministra Margareth Thatcher, era algo diferente de tudo que havia antes. A tríade Ibiza + acid house + ecstasy fez o verão de muitos ingleses, fazendo das ilhas baleáricas o cenário para o mítico “Summer of Love ‘87”. Mas essa alegria clandestina não durou muito tempo. A maioria silenciosa e seus representantes midiáticos pintaram os ravers como maníacos sexuais drogados e a sua “música” um barulho monótono e sem sentido. A lei pegou pesado e a apatia e desilusão logo se alastraram pela cena eletrônica britânica. Nesse momento a electronica se fragmentou e buscou em outros estilos musicais (hip-hop, reggae, punk rock, até bossa nova) as sementes de sua reinvenção. Aí surgiriam aquelas dezenas de micro (até nano) gêneros pela qual a música eletrônica é famosa: house, trance, Gabba, Big Beat, ambient techno, trip-hop, jungle / drum ‘n’ bass e o acrônimo hilário IDM, ou “Intelligent Dance Music” (como se todos os outros subgêneros fossem burros).

Do outro lado do Atlântico, o rock ‘n’ roll também passava por um período de mudanças. Depois de uma década de roqueiros com cabelo de poodle – o infame “glam metal”, conhecido como “hard rosa” ou “rock farofa” no Brasil – e o synthpop fashionista a lá Duran Duran (nada contra a banda!), a música dita “alternativa” redefiniu a música pop. O grunge invadiu as paradas com o seu rock sujo e existencialista e a Califórnia explodiu com grupos de funk-punk-metal (Jane’s Addiction, Faith No More, Red Hot Chili Peppers, Rage Against the Machine... etc.) Paralelo a isso, titãs do thrash metal como o Metallica e o Megadeth chegaram ao ápice de suas carreiras e o Sepultura, Pantera e Fear Factory mantiveram o metal visível no mainstream para uma nova geração de fãs de rock pesado.

A primeira faixa do álbum é a do Filter, banda de Richard Patrick, ex-Nine Inch Nails, fazendo uma versão pesada de “Can’t You Trip Like I Do”, adicionando letras, urros e guitarras distorcidas ao Big Beat made-in-Las-Vegas do Crystal Method. Sneaker Pimps e Marilyn Manson colaboram em “Long Hard Road Out of Hell”, não só a despedida da fase Antichrist Superstar (1996) do último, como também o título de sua interessantíssima autobiografia. DJ Spooky - mais conhecido por seu discurso intelectualóide do que pela a sua música - faz um remix drum 'n' bass decente pra "For Whom the Bell Tolls" do Metallica. Em “Kick the PA” o Korn e as suas guitarras afinadas em Zó Menor tem por base um beat hip-hop fornecido pelos Dust Brothers, a dupla de produtores que fez a trilha sonora de Clube da Luta (1999). The Prodigy colabora com Tom Morello, guitarrista do Audioslave e do Rage Against the Machine, uma parceria que nos presenteia a excelente “One Man Army”. Dois notórios extremistas musicais, o Slayer e o Atari Teenage Riot, colaboram na violenta “No Remorse (I Wanna Die!)”.

Outros grandes artistas presentes na seleção musical de Spawn não conseguem, infelizmente, causar grandes impressões. Goldie e Roni Size, os produtores mais conhecidos da história do drum 'n' bass, quase passam em branco, suas faixas alocadas no final do disco. A faixa título, criação do Silverchair e Vitro, tem lá seus momentos, mas em mim nunca gerou aquela reação visceral que o bom rock ou a boa música eletrônica gera. Quase desapercebida passa a contribuição de Moby com o Butthole Surfers (o melhor nome de banda de todos os tempos?). O Moby de 1997 não era ainda o megastar que pegou o mundo de surpresa com o fabuloso Play (1999), o álbum que provaria de vez por todas (principalmente pros americanos) que a música eletrônica podia ter, sim, muita "alma" e feeling, através do uso criativo de samples de canções antigas de gospel e blues.

Spawn – assim como Uma Jogada do Destino - sofre da triste sina de ser uma trilha sonora sensacional montada para um filme esdrúxulo. Tod McFarlane confirmou que está escrevendo o roteiro pra um segundo Spawn, dessa vez sem tentar domesticar a violência e o clima sombrio dos quadrinhos, o que basicamente causou o fracasso do primeiro filme. Tomara que esse segundo filme tenha uma trilha tão boa quanto esse...

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