Resenha de Filme: O Som ao Redor (2012)

4 de janeiro de 2013 2 Comente Aqui!

O Som ao Redor, escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho, é um soco no estômago. Mostra de maneira ímpar uma realidade brasileira. Filmado em um bairro de Recife, a câmera de Kleber foca os "novos ricos" ou a nova classe média. O modo de vida, relações pessoais, hábitos e vícios são muito bem retratados e este cotidiano poderia ser facilmente ambientado em qualquer canto do país, mas Recife mexe muito com o diretor - talvez por ser sua cidade natal.

Em seu curta-metragem mais premiado, Recife Frio (2009) - e o curta brasileiro mais premiado desde Ilha das Flores (Jorge Furtado, 1989) -, Kleber evoca de um jeito pessimista a cidade, tentando tirar sua máscara e dizer quem realmente ela é. Mas o que define Recife são as pessoas que lá residem e que dão vida a cidade, portanto uma série de personagens extremamente verossímeis e bem escritos fazem com que O Som ao Redor ganhe uma atmosfera realista e ao mesmo tempo cruel.

Ao abrir o filme com um plano-sequência que diz muito sobre a realidade de quem vive na cidade, com carros estacionados na garagem de um prédio que possui uma quadra de esporte para lazer, nos força a pensar quão o nosso mundo mudou em relação ao passado. Possivelmente algum tio ou tia mais velho(a) que você tenha já te falou "no meu tempo, eu brincava na rua com os meus vizinhos". A relação passado-presente - juntamente com a questão da violência - é um dos pontos que Kleber também levanta em seu longa-ficcional de estreia.

Vários personagens compõe o cenário de Kleber Mendonça, desde a empregada doméstica ao rico empresário de imóveis dono de quase todo o bairro. Composto quase inteiramente por prédios, quando a câmera no mais alto mira o chão, vemos alguns poucos buracos que na verdade são casas que ainda resistem em meio aos "arranha-céus". O olho apurado de Kleber nos releva que a hereditariedade do negro como "escravo" do branco permanece na sociedade: vemos que a empregada doméstica de João (Gustavo Jahn) é substituída por sua filha - ambas negras. Ela por sua vez tem uma irmã criança que assiste a um canal de televisão onde é transmitido discursos que possivelmente a roube sua "inocência". E isso mostra duas coisas: a discussão moral dos programas de televisão de hoje em dia e a infância restrita que condiciona as crianças em seus apartamentos.

A personagem feminina mais interessante de se analisar nesse filme-crítica é Bia, interpretada pela atriz revelação do momento Maeve Jinkings. Para quem já assistiu o curta-metragem do diretor chamado "Eletrodoméstica" (2005) sabe que ela não é uma personagem nova, mas aqui ele a complementa e a desenvolve de maneira muito mais orgânica. Circulada de eletrônicos e tecnologia, Kleber consegue abrir uma discussão filosófica moral em torno da situação que ela vive - a insatisfação e o desejo contínuo do ser humano que Arthur Shopenhauer teoriza - além de comentar quase que imperceptivelmente sobre classe social e status quando a personagem recebe em sua casa uma TV nova.

Tecnologia aqui, aliás, é debatido de modo recorrente nas cenas - claro que num ambiente atual isso haveria de ocorrer. Alguns momentos cômicos que acontecem no filme estão ligados a isso, por exemplo: Quando o líder do grupo de seguranças, Clodoaldo (Irandhir Santos, sempre ótimo), chega ao bairro oferecendo seu serviço e diz que a maior arma deles é o celular. Isso caracteriza definitivamente o período que estamos vivendo.

A crítica social, feita para atentos, é realizada com a maior elegância e inteligência possível. Por isso, o ponto mais alto do filme são os diálogos. Os atores (profissionais e amadores) que transmitem esses diálogos, totalmente informais e rotineiros, se saem bem com atuações precisas e reveladoras. Yuri Holanda, que dá vida ao personagem Dinho, faz otimamente bem o playboy marrento, o qual rouba "som" de carros como hobby e se safa da polícia - que está ocupada comprando produtos do camelô - por ser neto de Francisco (Waldemar José Solha), aquele empresário rico que citei anteriormente. Kleber inclusive nos mostra que Francisco, tempos atrás latifundiário dono do engenho de açúcar em Bonito, continua latifundiário na grande metrópole.

Igualmente importante na criação de todo o universo que o diretor critica, o som - quando necessário -  recria com exatidão os lugares, que desde o início transita entre o campo (com fotos em preto e branco) e a capital pernambucana. Os sons diegéticos estão perfeitamente presentes acrescentando mais uma dose de realidade. Já a trilha sonora do DJ Dolores, parceiro do cineasta em outros projetos, é mais usada em momentos de tensão quando o filme ganha um aspecto de suspense beirando o terror.

A narrativa de estrutura solta - e que também é dividida em três partes com a palavra "guarda" nos nomes (questão da violência) - não grita por atenção, nem exagera em seu discurso. Evolui de forma convincente e não deixa escorregar por estereótipos ou artifícios baratos. O diretor chacoalha a cabeça do espectador a fim de o fazer refletir sobre o que está ao seu redor. Assistindo ao filme duas vezes, a primeira na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2012 e a segunda na première do filme no Folha Documenta, percebi que na segunda visita ao filme observei mais coisas e detalhes do que na primeira. Este é aquele tipo de filme que você sempre poderá voltar a visitá-lo, pois ele sempre terá algo a dizer.

Com uma reviravolta surpreendente, O Som ao Redor nos revela mais um grande talento vindo do nordeste - que hoje produz muito mais filmes de autor que o eixo Rio-São Paulo. Kleber Mendonça Filho, que antes de cineasta é crítico de cinema, nos presenteia novamente - antes havia realizado o excelente longa-documentário Crítico (2008) - com esta obra-prima.


Trailer do Filme:

2 Comente Aqui! :

  • Fábio Henrique Carmo disse...

    Estou acompanhando entusiasmado esse sucesso do Kléber, que na minha opinião era o melhor crítico do país e deixou esta função para se tornar diretor. Adorava ler as críticas dele. Mesmo não concordando sempre, eram muito bem escritos, bem-humorados e com uma visão muito particular de cinema.

    "O Som ao Redor" não estreou aqui me Natal, mas vou procurar conferir tão logo quanto possível esse trabalho que deve mesmo ser ótimo.

  • Erasmo Penteado Neto disse...

    Olá, Fábio.

    Realmente o Kleber merece todo esse sucesso. Desde seus ótimos curtas (recomendo que assista todos eles) vem construindo uma carreira elogiável.

    Esperamos que ele continue pelo menos escrevendo as críticas do festival de Cannes, apesar de 2012 ele não ter ido/ou não ter escrito nada sobre.

    Se vai estrear aí em Natal é um enigma. O longa só estreou por enquanto em três capitais: Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Mas eu acho que demorando um pouco ou muito chega por aí sim.

    Grande abraço e bons filmes!

 
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