Antes de ser um filme sobre a
criação de uma seita, como foi divulgado durante sua produção, O
Mestre, trabalho mais recente do cineasta americano Paul Thomas Anderson, é uma obra sobre
ser humano, com erros, acertos, voltas por cima, resignações e busca por um
caminho próprio. Para divagar sobre essas temáticas, o diretor contextualiza
sua história no começo dos anos 50, logo após o final da segunda guerra. Boa
parte da população norte-americana (e mundial também) encontrava-se em um
estado de profunda melancolia, quando na verdade deveria ser uma época de
felicidade. No entanto, essa alegria era pouco palpável, muito pelas milhares
de vidas perdidas em campos de batalha. O país vivia uma letargia, com seus
veteranos de guerra voltando para casa traumatizados pelo conflito,
desconectados do fator “sociedade” e simplesmente ausentes de perspectivas.
Para simbolizar esse delicado
momento, visto como de transição também, a trama de O Mestre nos traz o
beberrão e problemático Freddie Quell (Joaquin
Phoenix), um ex-marinheiro, fanfarrão, embora sensível, fiel ao trabalho
durante seu tempo de serviço, mas um dos inúmeros alienados dentro de seu
tempo. Depois de uma temporada no hospital dos veteranos para tratar o estresse
pós-guerra, regressa à sociedade, mas tem dificuldades para se integrar,
vagando de emprego em emprego e envolvido sempre em problemas, muito por conta
de suas trapalhadas. Em um desses casos, quando trabalhava em uma plantação, é
acusado pelos lavradores de envenenar um deles com a singular bebida que
prepara usando até redutor de tinta entre alguns dos peculiares ingredientes. Durante
a fuga, bêbado, Freddie refugia-se em um iate atracado no balneário da cidade.
Nesse imponente iate, no dia seguinte e ainda de ressaca, conhece Lancaster
Dodd (Philip Seymour Hoffman) ou
simplesmente o Mestre, como prefere ser chamado.
Médico, físico, filósofo,
escritor, Dodd é um líder nato, melhor, Mestre inquestionável de um tipo de
seita chamada A Causa, que tem como fundamento a viagem no tempo para estudar os
antepassados e assim curar doenças psicológicas e físicas. Aqui, é quando a
trama de O Mestre se aproxima da tal premissa que o coloca como a origem
do sistema de crenças conhecido por Cientologia, criado em 1952 pelo autor de
ficção cientifica L. Ron Hubbard. O
personagem de Philip Seymour Hoffman,
revestido de nuances semelhantes, parece dialogar diretamente com o verídico
precursor da já citada Cientologia. Contudo, ainda que seja um mote trabalhado
com esmero e eficiência, creio ser apenas um pano de fundo consistente para Paul Thomas Anderson fazer sua digressão
sobre o poder da vida em sociedade, a força que a integração pela fé pode ter
sobre um ser solitário e sem horizonte e logo as invariáveis concessões a serem
feitas para se “usufruir” de tais benefícios. O que também não deixa de ser
preceitos canalizadores de adeptos em muita das religiões conhecidas.
Não obstante a ser um mero e
simplório retrato de doutrina, apesar de ser, mesmo que involuntariamente, O
Mestre foca com rigor nos contornos da relação conflituosa, mas de
admiração mútua, entre Freddie e Dodd. O primeiro, de espírito selvagem,
inconseqüente, “um animal”, como o próprio Mestre chama, tenta se enquadrar nos
ensinamentos do segundo. Enquanto Dodd, com sua retórica afiada e precisão
clinica nas colocações, vê em Freddie um desafio, tipo de adepto perfeito para
propagar suas idéias. Embora exista o fator catequizador na trama, onde Dodd
usa de artifícios pré-definidos para mudar os conceitos que Freddie tem da
vida, acredito que em certo ponto da jornada, a relação Mestre/Aprendiz
transcende os ensinamentos e se torna uma amizade pungente. Nesse momento é
quando o filme torna-se maior que as problemáticas discutidas, ganhando
pertinentes nuances reflexivas sobre a conduta do ser humano em relação à
vontade própria, livre arbítrio. Afinal, é possível mudar alguém contra sua
própria vontade? Uma pessoa deve aceitar condições que reprova apenas por
admirar seu precursor? O quanto é necessário que alguém lhe diga o caminho a
seguir?
Para tal embate ter aspectos
críveis e viscerais, trazendo o espectador para dentro da trama, é importante
ressaltar com ênfase o trabalho de Joaquin
Phoenix e Philip Seymour Hoffman.
A dupla de talentosos atores enche a tela de complexidade, reflexão. Com a câmera
de Paul Thomas Anderson muitas vezes
próximo dos rostos, acompanhamos in loco
cada movimento de expressão colocada com precisão dentro do sentido dos
diálogos afiados. Não bastasse Joaquin
Phoenix imerso no caráter de Freddie, o ator ainda transforma-se
fisicamente, trazendo um dos personagens mais bem lapidados do recente cinema
norte-americano. À medida que Philip
Seymour Hoffman, não menos genial, constrói seu Mestre com gentileza,
imposição, carisma, mas também pronto para explodir ao menor sinal de ser
contrariado. Nessa perspectiva peculiar da personalidade de Dodd é que surge
uma das cenas mais intempestivas de O Mestre, quando um ouvinte de uma
sessão de regressão interpela o homem sobre as conseqüências da divulgação de
um trabalho de fundamentos tão questionáveis.
Existe uma tensão crescente,
sempre pairando no ar em O
Mestre , muito por conta do já citado relacionamento
conflituoso entre os protagonistas. Embora as interpretações sejam a força
motriz do filme nesse aspecto de gerar ansiedade e impaciência, vale apontar
uma consideração técnica que faz suporte primordial para tais características
surgirem com eficiência redobrada. Falamos aqui da imponente trilha sonora a
cargo de Jonny Greenwood, guitarrista
da banda britânica Radiohead. Inúmeras
vezes as composições soam desafiadoras, principalmente Aplicattion 45 Version 1 (que vem a ser um dos métodos de trabalho
da A Causa), que entoa sugerindo batidas de martelos continuas, incessantes, transmitindo
assim uma sensação incômoda, faz-se fundamental para tirar o espectador da zona
de conforto.
Contando ainda com um elenco
coadjuvante talentoso, com destaque para as atrizes Amy Adams e Laura Dern,
que mesmo eclipsadas em boa parte da projeção pelas atuações categóricas dos
protagonistas, ainda assim conseguem ter seus momentos de destaque na trama.
Uma particular cena de Laura Dern
funciona como fator decisivo e revelador sobre o caráter misterioso de Dodd, ao
passo que uma outra seqüência já perto do desfecho, envolvendo Amy Adams, é definitiva para o exame
sobre a consciência peculiar de Freddie. Ao contrário de Sangue Negro (2007), sua contundente obra anterior, onde o diretor
reserva o epílogo para um momento de explosão em contradição ao clima ameno de
boa parte da narrativa, os momentos derradeiros de O Mestre contêm uma poesia inocente e singela, além de certo teor
cômico, ausente de boa parte do filme. Não restam dúvidas que com O Mestre, o cineasta Paul Thomas Anderson brinda o público
com mais um trabalho maduro, relevante e de valor humano inquestionável.
Consolidando assim cada vez mais seu nome no panteão do cinema contemporâneo,
quiçá de todos os tempos.
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