Entrevista com Fernando Gralha

19 de dezembro de 2012 0 Comente Aqui!
Com espaço dedicado também ao cinema, está no ar a primeira edição da revista Gnarus, uma revista virtual de História.
Você pode acessar a Gnarus acessando o site www.gnarusrevistadehistoria.com.br
A Gnarus é um projeto do professor Fernando Gralha e de sua aluna Jessica Corais, ambos da área de História. A revista conta com artigos acadêmicos de diversos historiadores e também apresenta um espaço todo dedicado ao cinema.
Para contar como é unir cinema e história, o site Cinema Detalhado conversou com o professor Fernando Gralha, idealizador da Gnarus, autor do primeiro artigo sobre cinema da revista e um apaixonado por filmes. 
1- Como começou seu interesse por filmes?
Não saberia precisar exatamente uma data, mas posso dizer que começou bem cedo, fui criado praticamente no enorme quintal de meus avós, nele tinha tudo que um quintal na minha opinião deve ter, árvores boas de subir, um fundo meio pantanoso com toda uma fauna de rãs, grilos, lavadeiras, mariposas, formigas e etc. e principalmente tinha meu avô, meio cientista, meio artista que adorava livros e cinema, junto com ele fui construindo um gosto por leitura e filmes, no quintal aproveitava para, na minha imaginação, bancar os heróis que via nos filmes e lia nos livros, acho que o começo do “vício” em cinema começou aí, depois virei frequentador assíduo das salas de projeção, quando comecei a trabalhar e surgiu o videocassete virei colecionador e quando entrei para a graduação em História descobri que podia me aprofundar nos estudos sobre o tema, e acabei fazendo meu trabalho final discutindo as relações entre cinema e história. 
2- Qual é a relação hoje entre os historiadores e cinema? É bem vista?
Ela começou conturbada, no início do século XX, documento para o historiador era o escrito, e mesmo assim se escrito por uma elite intelectual e política, qualquer produção humana fora disso era praticamente desconsiderado pelo historiador. Mas a partir de 1929 aconteceu uma revolução no modo de se pensar e produzir o discurso historiográfico, foi a chamada revolução da Escola dos Annales, e neste processo revolucionário, dentre outros tipos de documentos, o cinema foi alçado a uma legítima e rica fonte de estudos para o historiador, o responsável por isso foi o historiador Marc Ferro que com seu artigo “O filme: uma contra-análise da sociedade”, estabeleceu algumas questões como a importância do filme para entender a sociedade que o produziu e de como os filmes com teor histórico, ou seja, que se remetem a um fato passado, são também um discurso histórico. Desde então a relação entre historiadores e cinema ficou pra lá de amistosa, pois tanto nós historiadores usamos o cinema para a produção historiográfica, como o cinema, com frequência, bebe na fonte dos conhecimentos históricos para narrar aventuras, romances, intrigas, dramas e toda sorte de experiências do ser humano. 
3 - Quais são os benefícios que um filme relacionado à História pode trazer para um estudante?
Na minha opinião, o aspecto fundamental é o de aliar a razão à emoção. O filme possibilita a nós educadores, tomar de assalto os discentes e suas razões, envolvendo-os na trama do real. E é justamente dessa maneira que a emoção pode e deve se atrelar à razão. Ao fazer com que estudantes sintam necessidade de refletir sobre a História e por consequência à vida, a partir de obras cinematográficas, vincula-se, no ato, a constatação do inevitável: pensar a história como ação inseparável do homem. Como retratar a vida sem refletir a história? Através da vida representada numa tela, nos transportamos para outros tempos e espaços, onde podemos visualizar a representação da emoção dos personagens, do calor das batalhas, das tramas políticas, dos questionamentos sociais e manifestações culturais, enfim, como já disse acima, da vida.
Algumas obras, por exemplo, podem ser de grande utilidade na reconstrução do gestual, do vestuário, do vocabulário, da arquitetura e dos costumes do período retratado. Mas, para além da representação desses elementos audiovisuais, elas “refletem” a mentalidade da sociedade, incluindo a sua ideologia, através da presença de elementos dos quais, muitas vezes, nem mesmo aqueles que produziram essas películas têm consciência, constituindo-se, assim, como sentencia Marc Ferro, em “zonas ideológicas não-visíveis da sociedade”. Por exemplo, são juízos de valores e de moral expressos pelas culturas, como a forma de alimentação, ou a maneira de pensar e de seguir determinados comportamentos – principalmente quando contrastado com outros povos ou culturas. Possibilidades que só “filmes históricos” podem proporcionar.
4- Quais são as dicas (os cuidados) que o senhor daria para que uma pessoa possa analisar um filme histórico?
A dica principal é entender que cineasta não é historiador, ele não tem, e nem precisa ter uma preocupação com o rigor da pesquisa historiográfica, ele vai encenar aquilo que o interessa, a seu público e principalmente ao mercado que o consome enquanto lazer, mesmo que isso não se configure como resultado de uma pesquisa histórica. Então cabe a nós historiadores e a quem interessar, uma análise mais profunda do filme, entender que qualquer filme se remete muito mais à época de sua produção do que ao período retratado, por exemplo, existem dois filmes famosos sobre gladiadores que tem uma abordagem completamente diferente do mesmo período, um é “Spartacus” de 1960, direção de Stanley Kubrik o outro é “Gladiador” de 2000, direção de Ridley Scott, os dois tratam do período romano onde o Coliseu era a praça principal de lazer dos romanos, mas os anos 1960 não são os 2000, nos anos 60 em plena guerra fria temos Spartacus um gladiador preocupado em derrubar o Império romano com a força das massas, clara alusão às ideologias revolucionárias marxistas, já em “Gladiador” o general “Maximus”, após ir ao fundo poço como escravo, monta sua vingança pessoal contra o Imperador, sua questão não é pública, ele não quer derrubar o Império, ele não se alia às massas e nem acha que precisa delas, é o próprio “self made man”, ou seja, o emblema de um capitalismo individualista e vitorioso, ou seja, temos duas versões do mesmo tema que se parecem mais com o seu tempo do que ao qual se rementem. Portanto, de forma bem resumida, é importante em uma análise fílmica fazer cinco perguntas básicas: Quem produziu? Como produziu? Quando Produziu? Para quem produziu? e Onde Produziu?
O discurso fílmico deve sua gênese a basicamente estes fatores de produção que vão desde onde ele foi produzido (um filme sobre a revolução russa feito na Rússia nunca vai ter a mesma abordagem que um filme de mesmo tema feito em Hollywood) passando pela formação do cineasta até os recursos financeiros que ele dispõe para montar a película. Entender estas questões é de fundamental importância na leitura fílmica.
5- Qual é o maior erro que o senhor já viu em um filme?
Bom, se formos levar para o lado do rigor da pesquisa historiográfica, não teremos espaço aqui para elencar os grandes disparates, podemos dizer que nenhum filme é rigorosamente fiel aos conhecimentos históricos, até por conta das características que apresentei na pergunta anterior. Mas podemos pensar aqui em alguns erros clássicos, como penteados e vestuário modernos em personagens medievais como em “Coração de Cavaleiro”; a redução de personagens a uma única característica como a lascívia de Carlota Joaquina, personagem de filme com o mesmo nome; valores anacrônicos, como consciência de classe entre escravos e o discurso por “liberdade” do personagem Willian Wallace (Mel Gibson) em um mundo feudal de “Coração Valente”; o mais comum e quase inevitável é a linguagem, poucos se arriscam a gravar um filme com o linguajar da época retratada, no Brasil o único exemplo que conheço é “Desmundo” de Alain Fresnot, produzido em 2002, nele o diretor teve a grande sacada de gravar os diálogos em um português de 1535, como resultado, precisou de legendas; temos também o “embaralhamento” de fatos e culturas como se fossem uma só, “Apocalypto” de Mel Gibson, filme de 2005, coloca no mesmo saco as culturas Maia, Asteca e Inca como se fossem uma só, este realmente me incomodou um pouco. Na verdade nós historiadores amamos implicar com as inverdades do cinema, mas amamos mais ainda as possibilidades que a sétima arte nos proporciona.
6- Os filmes históricos lançados hoje estão melhores ou piores em relação aos filmes produzidos no passado?
Não acho que a questão seja de mensurar se são melhores ou piores, a questão é novamente situar o filme no contexto de sua produção, a leitura da sociedade feita pelo cinema de certa forma retrata sua historicidade, ou seja, a forma como aquela sociedade entende e pensa a si mesma, então, por exemplo, temos um filme que é considerado um exemplo de renovação técnica no período de sua produção chama-se “O Nascimento de uma Nação” de D. W. Griffiht de 1915, a técnica é realmente revolucionária, mas o conteúdo é de uma racismo, me desculpe o termo, enojador, uma clara propaganda da supremacia branca estadunidense através da instituição da Klu Klux Klan como salvadora da nação, mas a frente em 1985 temos de Steven Spielberg “A Cor púrpura” que dá uma outra visão da condição do negro nos E.U.A, nela o negro é humanizado e tratado em toda sua tragédia histórica do preconceito e das chagas do racimso. Qual é o melhor? Não saberia dizer, pois os dois me permitem, dentro de sua historicidade tanto entender a época de sua produção quanto fomentam as discussões sobre o período retratado. Estou aqui usando dois exemplos específicos, mas esta relação pode ser usada em qualquer filme, desde que, façamos uma “arqueologia” do filme, ou seja, as tais cinco perguntas que citei anteriormente, para complementar, Marc Ferro em seu clássico artigo também já citado aqui, diz que “um filme diz tanto quanto for perguntado”, na verdade as possibilidades de um filme enquanto documento histórico estão mais na competência do historiador em perscrutar sua fonte do que nas intenções do cineasta. Então desta forma para o historiador competente não tem filme ruim, tem filme mal analisado.
7- Queria que o senhor desse dicas de filmes e justificasse sua escolha.
Bom, eu poderia passar horas aqui falando de filmes que eu gostaria que todos vissem, mas posso citar alguns em especial, o primeiro deles, me é muito caro, chama-se “O Nome da Rosa” de Jean-Jacques Annaud, de 1986, ele é especial porque tem características que são importantes para o historiador justamente pelo seu rigor historiográfico, primeiro por se basear no romance homônimo de Umberto Eco (historiador, medievalista, filósofo, semiólogo e mais alguns títulos) que não tem rigorosamente, apesar de ser um romance, nenhuma incorreção historiográfica, além disso, na equipe de produção do filme estava um dos maiores medievalistas da atualidade o historiador Jacques Le Goff, que deu à produção o tom certo da iluminação, do vestuário, da arquitetura, do mobiliário, do gestual, ou seja, o filme transportou para a tela toda a ambiência medievalista conhecida pela historiografia, além é claro da excelente trama que envolve assassinatos, querelas religiosas e disputas de poder.
Outro que recomendo é um documentário, “Arquitetura da Destruição” de Peter Cohen consagrado internacionalmente como um dos melhores estudos já feitos sobre o nazismo no cinema, nele entendemos como através de uma sensibilidade estética, Hitler e seu staff conseguiram convencer quase toda a Alemanha da necessidade de se eliminar doentes, diferentes e divergentes do regime nazista.
Vou recomendar também não um filme mais uma filmografia, a do diretor estadunidense Wood Allen, seus filmes, na minha opinião, são perfeitos para entender algumas de nossas crises da modernidade, principalmente as ligadas ao universo masculino e às questões das relações sociais, filosóficas e políticas, genial.
Não deixem de assistir também um pequeno curta metragem chamado “Ilha das Flores”, de Jorge Furtado, o premiadíssimo filme inicia de forma lúdica, como num documentário sobre o ser humano e suas potencialidades, e aos poucos vai passando do tom suave para o tom documental cru e direto acerca da miséria humana. Há muitas ideias brilhantes que levam a reflexões profundas e muito mais duradouras que os poucos minutos do filme. Aliás, é relevante o fato de se tratar de um curta, já que pode ser visto facilmente em qualquer tempinho que se tenha disponível. A narrativa é feita em off, pelo ator Paulo José, e dita o ritmo das cenas, em colagens entre imagens geradas e outras emprestadas que beiram a brincadeira infantil, numa linguagem visual agradável e ágil.
Para finalizar recomendo filmes, o cinema é realmente a maior diversão.

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