Com
espaço dedicado também ao cinema, está no ar a primeira edição
da revista Gnarus, uma revista virtual de História.
Você
pode acessar a Gnarus acessando o site
www.gnarusrevistadehistoria.com.br
A
Gnarus é um projeto do professor Fernando Gralha e de sua aluna
Jessica Corais, ambos da área de História. A revista conta com
artigos acadêmicos de diversos historiadores e também apresenta um
espaço todo dedicado ao cinema.
Para
contar como é unir cinema e história, o site Cinema Detalhado
conversou com o professor Fernando Gralha, idealizador da Gnarus,
autor do primeiro artigo sobre cinema da revista e um apaixonado por
filmes.
1-
Como começou seu interesse por filmes?
Não
saberia precisar exatamente uma data, mas posso dizer que começou
bem cedo, fui criado praticamente no enorme quintal de meus avós,
nele tinha tudo que um quintal na minha opinião deve ter, árvores
boas de subir, um fundo meio pantanoso com toda uma fauna de rãs,
grilos, lavadeiras, mariposas, formigas e etc. e principalmente tinha
meu avô, meio cientista, meio artista que adorava livros e cinema,
junto com ele fui construindo um gosto por leitura e filmes, no
quintal aproveitava para, na minha imaginação, bancar os heróis
que via nos filmes e lia nos livros, acho que o começo do “vício”
em cinema começou aí, depois virei frequentador assíduo das salas
de projeção, quando comecei a trabalhar e surgiu o videocassete
virei colecionador e quando entrei para a graduação em História
descobri que podia me aprofundar nos estudos sobre o tema, e acabei
fazendo meu trabalho final discutindo as relações entre cinema e
história.
2-
Qual é a relação hoje entre os historiadores e cinema? É bem
vista?
Ela
começou conturbada, no início do século XX, documento para o
historiador era o escrito, e mesmo assim se escrito por uma elite
intelectual e política, qualquer produção humana fora disso era
praticamente desconsiderado pelo historiador. Mas a partir de 1929
aconteceu uma revolução no modo de se pensar e produzir o discurso
historiográfico, foi a chamada revolução da Escola dos Annales, e
neste processo revolucionário, dentre outros tipos de documentos, o
cinema foi alçado a uma legítima e rica fonte de estudos para o
historiador, o responsável por isso foi o historiador Marc Ferro que
com seu artigo “O filme: uma contra-análise da sociedade”,
estabeleceu algumas questões como a importância do filme para
entender a sociedade que o produziu e de como os filmes com teor
histórico, ou seja, que se remetem a um fato passado, são também
um discurso histórico. Desde então a relação entre historiadores
e cinema ficou pra lá de amistosa, pois tanto nós historiadores
usamos o cinema para a produção historiográfica, como o cinema,
com frequência, bebe na fonte dos conhecimentos históricos para
narrar aventuras, romances, intrigas, dramas e toda sorte de
experiências do ser humano.
3 -
Quais são os benefícios que um filme relacionado à História pode
trazer para um estudante?
Na
minha opinião, o aspecto fundamental é o de aliar a razão à
emoção. O filme possibilita a nós educadores, tomar de assalto os
discentes e suas razões, envolvendo-os na trama do real. E é
justamente dessa maneira que a emoção pode e deve se atrelar à
razão. Ao fazer com que estudantes sintam necessidade de refletir
sobre a História e por consequência à vida, a partir de obras
cinematográficas, vincula-se, no ato, a constatação do inevitável:
pensar a história como ação inseparável do homem. Como retratar a
vida sem refletir a história? Através da vida representada numa
tela, nos transportamos para outros tempos e espaços, onde podemos
visualizar a representação da emoção dos personagens, do calor
das batalhas, das tramas políticas, dos questionamentos sociais e
manifestações culturais, enfim, como já disse acima, da vida.
Algumas
obras, por exemplo, podem ser de grande utilidade na reconstrução
do gestual, do vestuário, do vocabulário, da arquitetura e dos
costumes do período retratado. Mas, para além da representação
desses elementos audiovisuais, elas “refletem” a mentalidade da
sociedade, incluindo a sua ideologia, através da presença de
elementos dos quais, muitas vezes, nem mesmo aqueles que produziram
essas películas têm consciência, constituindo-se, assim, como
sentencia Marc Ferro, em “zonas ideológicas não-visíveis da
sociedade”. Por exemplo, são juízos de valores e de moral
expressos pelas culturas, como a forma de alimentação, ou a maneira
de pensar e de seguir determinados comportamentos – principalmente
quando contrastado com outros povos ou culturas. Possibilidades que
só “filmes históricos” podem proporcionar.
4-
Quais são as dicas (os cuidados) que o senhor daria para que uma
pessoa possa analisar um filme histórico?
A
dica principal é entender que cineasta não é historiador, ele não
tem, e nem precisa ter uma preocupação com o rigor da pesquisa
historiográfica, ele vai encenar aquilo que o interessa, a seu
público e principalmente ao mercado que o consome enquanto lazer,
mesmo que isso não se configure como resultado de uma pesquisa
histórica. Então cabe a nós historiadores e a quem interessar, uma
análise mais profunda do filme, entender que qualquer filme se
remete muito mais à época de sua produção do que ao período
retratado, por exemplo, existem dois filmes famosos sobre gladiadores
que tem uma abordagem completamente diferente do mesmo período, um é
“Spartacus” de 1960, direção de Stanley Kubrik o outro é
“Gladiador” de 2000, direção de Ridley Scott, os dois tratam do
período romano onde o Coliseu era a praça principal de lazer dos
romanos, mas os anos 1960 não são os 2000, nos anos 60 em plena
guerra fria temos Spartacus um gladiador preocupado em derrubar o
Império romano com a força das massas, clara alusão às ideologias
revolucionárias marxistas, já em “Gladiador” o general
“Maximus”, após ir ao fundo poço como escravo, monta sua
vingança pessoal contra o Imperador, sua questão não é pública,
ele não quer derrubar o Império, ele não se alia às massas e nem
acha que precisa delas, é o próprio “self made man”, ou seja,
o emblema de um capitalismo individualista e vitorioso, ou seja,
temos duas versões do mesmo tema que se parecem mais com o seu tempo
do que ao qual se rementem. Portanto, de forma bem resumida, é
importante em uma análise fílmica fazer cinco perguntas básicas:
Quem produziu? Como produziu? Quando Produziu? Para quem produziu? e
Onde Produziu?
O
discurso fílmico deve sua gênese a basicamente estes fatores de
produção que vão desde onde ele foi produzido (um filme sobre a
revolução russa feito na Rússia nunca vai ter a mesma abordagem
que um filme de mesmo tema feito em Hollywood) passando pela formação
do cineasta até os recursos financeiros que ele dispõe para montar
a película. Entender estas questões é de fundamental importância
na leitura fílmica.
5-
Qual é o maior erro que o senhor já viu em um filme?
Bom,
se formos levar para o lado do rigor da pesquisa historiográfica,
não teremos espaço aqui para elencar os grandes disparates, podemos
dizer que nenhum filme é rigorosamente fiel aos conhecimentos
históricos, até por conta das características que apresentei na
pergunta anterior. Mas podemos pensar aqui em alguns erros clássicos,
como penteados e vestuário modernos em personagens medievais como em
“Coração de Cavaleiro”; a redução de personagens a uma única
característica como a lascívia de Carlota Joaquina, personagem de
filme com o mesmo nome; valores anacrônicos, como consciência de
classe entre escravos e o discurso por “liberdade” do personagem
Willian Wallace (Mel Gibson) em um mundo feudal de “Coração
Valente”; o mais comum e quase inevitável é a linguagem, poucos
se arriscam a gravar um filme com o linguajar da época retratada, no
Brasil o único exemplo que conheço é “Desmundo” de Alain
Fresnot, produzido em 2002, nele o diretor teve a grande sacada de
gravar os diálogos em um português de 1535, como resultado,
precisou de legendas; temos também o “embaralhamento” de fatos e
culturas como se fossem uma só, “Apocalypto” de Mel Gibson,
filme de 2005, coloca no mesmo saco as culturas Maia, Asteca e Inca
como se fossem uma só, este realmente me incomodou um pouco. Na
verdade nós historiadores amamos implicar com as inverdades do
cinema, mas amamos mais ainda as possibilidades que a sétima arte
nos proporciona.
6-
Os filmes históricos lançados hoje estão melhores ou piores em
relação aos filmes produzidos no passado?
Não
acho que a questão seja de mensurar se são melhores ou piores, a
questão é novamente situar o filme no contexto de sua produção, a
leitura da sociedade feita pelo cinema de certa forma retrata sua
historicidade, ou seja, a forma como aquela sociedade entende e pensa
a si mesma, então, por exemplo, temos um filme que é considerado um
exemplo de renovação técnica no período de sua produção
chama-se “O Nascimento de uma Nação” de D. W. Griffiht de 1915,
a técnica é realmente revolucionária, mas o conteúdo é de uma
racismo, me desculpe o termo, enojador, uma clara propaganda da
supremacia branca estadunidense através da instituição da Klu Klux
Klan como salvadora da nação, mas a frente em 1985 temos de Steven
Spielberg “A Cor púrpura” que dá uma outra visão da condição
do negro nos E.U.A, nela o negro é humanizado e tratado em toda sua
tragédia histórica do preconceito e das chagas do racimso. Qual é
o melhor? Não saberia dizer, pois os dois me permitem, dentro de sua
historicidade tanto entender a época de sua produção quanto
fomentam as discussões sobre o período retratado. Estou aqui usando
dois exemplos específicos, mas esta relação pode ser usada em
qualquer filme, desde que, façamos uma “arqueologia” do filme,
ou seja, as tais cinco perguntas que citei anteriormente, para
complementar, Marc Ferro em seu clássico artigo também já citado
aqui, diz que “um filme diz tanto quanto for perguntado”, na
verdade as possibilidades de um filme enquanto documento histórico
estão mais na competência do historiador em perscrutar sua fonte do
que nas intenções do cineasta. Então desta forma para o
historiador competente não tem filme ruim, tem filme mal analisado.
7-
Queria que o senhor desse dicas de filmes e justificasse sua escolha.
Bom,
eu poderia passar horas aqui falando de filmes que eu gostaria que
todos vissem, mas posso citar alguns em especial, o primeiro deles,
me é muito caro, chama-se “O Nome da Rosa” de Jean-Jacques
Annaud, de 1986, ele é especial porque tem características que são
importantes para o historiador justamente pelo seu rigor
historiográfico, primeiro por se basear no romance homônimo de
Umberto Eco (historiador, medievalista, filósofo, semiólogo e mais
alguns títulos) que não tem rigorosamente, apesar de ser um
romance, nenhuma incorreção historiográfica, além disso, na
equipe de produção do filme estava um dos maiores medievalistas da
atualidade o historiador Jacques Le Goff, que deu à produção o tom
certo da iluminação, do vestuário, da arquitetura, do mobiliário,
do gestual, ou seja, o filme transportou para a tela toda a ambiência
medievalista conhecida pela historiografia, além é claro da
excelente trama que envolve assassinatos, querelas religiosas e
disputas de poder.
Outro
que recomendo é um documentário, “Arquitetura da Destruição”
de Peter Cohen consagrado internacionalmente como um dos melhores
estudos já feitos sobre o nazismo no cinema, nele entendemos como
através de uma sensibilidade estética, Hitler e seu staff
conseguiram convencer quase toda a Alemanha da necessidade de se
eliminar doentes, diferentes e divergentes do regime nazista.
Vou
recomendar também não um filme mais uma filmografia, a do diretor
estadunidense Wood Allen, seus filmes, na minha opinião, são
perfeitos para entender algumas de nossas crises da modernidade,
principalmente as ligadas ao universo masculino e às questões das
relações sociais, filosóficas e políticas, genial.
Não
deixem de assistir também um pequeno curta metragem chamado “Ilha
das Flores”, de Jorge Furtado, o premiadíssimo filme inicia de
forma lúdica, como num documentário sobre o ser humano e suas
potencialidades, e aos poucos vai passando do tom suave para o tom
documental cru e direto acerca da miséria humana. Há muitas ideias
brilhantes que levam a reflexões profundas e muito mais duradouras
que os poucos minutos do filme. Aliás, é relevante o fato de se
tratar de um curta, já que pode ser visto facilmente em qualquer
tempinho que se tenha disponível. A narrativa é feita em off, pelo
ator Paulo José, e dita o ritmo das cenas, em colagens entre imagens
geradas e outras emprestadas que beiram a brincadeira infantil, numa
linguagem visual agradável e ágil.
Para
finalizar recomendo filmes, o cinema é realmente a maior diversão.
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