Crítica: Holy Motors

29 de novembro de 2012 0 Comente Aqui!
Um filme não necessariamente precisa ser didático, explicar com veemência a sua trama, história, mostrando ao público unicamente o que se deve sentir. Quando concebido por um realizador destemido e com a clara intenção de desafiar os sentidos do espectador, seja na busca de um entendimento maior do todo ou na abstração da trama e imersão total no conteúdo imagético, essa afirmação da primeira sentença pode se tornar uma máxima. Na verdade, até na condição de entusiasta desse tipo de cinema, acredito piamente que a maioria dos filmes marcantes são os que carregam certa aura misteriosa, despertando a nossa curiosidade de entender com clareza seu conteúdo. Se fosse necessário fazer uma simples analogia para exemplificar essa idéia, citaria a conhecida lenda da esfinge: decifra-me ou te devoro.

Em alguns casos, principalmente quando se fala de cinema ou do cinema, de fato, relevante, é preferível ser devorado pela esfinge. Novamente exemplificando essas digressões do primeiro parágrafo, certo ainda que alguns vão discordar, cito brevemente dois filmes-enigmas que acredito terem seus lugares guardados no panteão das grandes obras da sétima arte: primeiramente, Ano Passado em Marienbad (Alain Resnais-1961) e posteriormente Cidade dos Sonhos (David Lynch-2001). Ambas são obras carregadas de simbolismos, com identidade visual própria, enigmáticas e que também, ou a priori, como no caso de Ano Passado em Marienbad, subvertem a linguagem cinematográfica. Essas características citadas desde o inicio desse texto podem, alias, devem ser aplicadas à produção de origem francesa, Holy Motors, dirigida e roteirizada pelo sumido Leos Carax. O último trabalho desse diretor em longa-metragem foi Pola X, de 1999.

Na primeira cena de Holy Motors encontramos uma platéia adormecida em frente a uma tela de cinema, vigiados de perto por um gigantesco cão (seriam espectadores domesticados pelas produções triviais?). Um personagem também adormecido (o próprio Leos Carax), tal como a citada platéia, mas em um lugar inespecífico, se levanta e carregando uma chave como extensão de seu dedo, abre uma improvável e peculiar porta (seria essa a porta para uma nova realidade?). Atravessando a porta, transpomos a janela da onde uma menina visiona o horizonte, para assim vermos o Sr. Oscar (Denis Lavant) despedir-se da família e entrar em uma imponente limusine branca para mais um dia de trabalho. A conversa inicial ao telefone pode sugerir que Oscar é um executivo de finanças, mas não se engane, quando sua fiel motorista Céline (Edith Scob) lhe passa o primeiro trabalho do dia, de cara sabemos que a labuta desse homem é mais incomum do que se possa imaginar.

A missão de Oscar é transformar-se em diversos tipos durante o dia, podendo ser uma senhora mendigando, um dublê performático de tecnologia de ponta, um louco esquizofrênico, um pai de família frustrado, um violento mafioso ou mesmo um senhor no final de sua vida. Pode parecer simples, mas não é, a cada nova seqüência, Holy Motors enche o espectador de dúvidas e questionamentos. De tais considerações, a mais evidente é que o filme de Leos Carax tem forte apelo metalingüístico, mas não de uma forma descarada, clichê. No meu ponto de vista, o nosso Oscar (esse nome já parece um simbolismo) seria o ator, a limusine seu camarim, o mundo lá fora a grande tela de um cinema; e como nós, os coadjuvantes são a audiência, ávida por reviravoltas e boas surpresas. Não é a toa que o diretor alterne uma pegada naturalista, sobretudo nos planos-seqüência que acompanham o automóvel, com um tom expressivamente hiper-realístico, principalmente quando trata dos desfechos surreais de cada nova incursão interpretativa do protagonista.

Transitando propositalmente pelos gêneros cinematográficos mais distintos, o leque de Holy Motors se abre a partir do melodrama, passando pela ficção cientifica, thriller de ação e suspense, musical e romance. Ainda que apresente algumas características enquadráveis, a mais pura verdade é que estamos diante de uma obra de interpretações pessoais, aberta sempre a novas conotações e ponderações. Agora mesmo, durante a redação desse texto, novas idéias começaram a implicar minha linha de raciocínio e digo, não é fácil traduzir em palavras uma realização que procura fugir de significados e rótulos. Deixando rapidamente seu caráter reflexivo de lado, deve-se ressaltar o magnífico e louvável trabalho do ator Dennis Lavant. Imerso em seu personagem, ou melhor, em vários personagens, ele entrega diversas interpretações profundas, ainda que muitas não tenham mais do que poucos minutos. Lavant se constrói e descontrói a olhos vivos, mostrando como pode ser exaustivo o trabalho de caracterização física e emocional de um ator.

De ordem técnica, é de encher os olhos o trabalho de direção de arte e fotografia, aqui, o design e a concepção artística criam uma atmosfera única para a obra e são responsáveis diretos pela já citada força imagética de Holy Motors. A montagem também é realizada com destreza, alternando cortes secos com a chamada “montagem invisível”, fazendo o filme fluir com facilidade e deixando até aquele gostinho de quero mais. O diretor Leos Carax nos traz uma obra cara a temáticas serias e melancólicas (será?) e que entre os gêneros cinematográficos evidenciados mais acima, parece não deixar espaço nenhum para a comédia. Em certo momento, de forma sarcástica, o Sr. Oscar diz para sua motorista: “Precisamos rir antes da meia-noite”. Prenúncio? Dentre todas as aspirações inconclusivas, a menos evidente e talvez até mais assertiva, seja a de que Holy Motors é uma grande paródia velada, mas enfim, diante de tantas conjecturas eletivas, não poderia afirmar com toda a certeza.



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