Aos poucos vou me interando com
as características do cinema de Abel Ferrara e também posso dizer que
me afeiçoando. Curioso que tendo realizados obras relevantes nos anos 90, como
o Rei de Nova York, Vicio Frenético e esse não menos
contundente, Os Viciosos, o humilde cinéfilo que vos escreve só tenha
começado a apreciar seu trabalho um bocado de tempo depois de seu auge. Digo
isso, porque os 90´ foram aonde vivi intensamente as descobertas
cinematográficas e que impulsionaram minha cinefilia a um nível viciante
(digamos assim). Credito esse desconhecimento à filmografia de Ferrara, pela
possível distribuição ineficiente de seus trabalhos no Brasil. Sinceramente,
não lembro de nenhum de seus filmes sendo exibidos em cinemas que freqüentava e
olha que eu não saia da Cinêlandia (antigo reduto cinéfilo no RJ). O importante
é que agora posso suprir essa falha com propriedade e adquirir conhecimento
sobre um realizador que tem muito apreço pelo seu trabalho, ao ponto de
elevá-lo a um nível artístico.
O termo “marginal” costuma ser
muito usado para designar o cinema de Abel Ferrara, apesar de não
concordar completamente, porque vejo cinema marginal como algo mais dificultoso
em sua concepção (como nas realizações de guerrilha praticadas na Boca do Lixo).
Nas obras de Ferrara que assisti, percebo virtuosismos técnicos, como
uso de películas especiais, fotografia caprichada, o que demanda orçamento um
pouco mais folgado. Acredito que tal afirmação sobre a marginalidade de suas
realizações cabe pelo diretor ter carisma por personagens e ambientações vistas
como a margem da sociedade. Na condição de autoral, os personagens criados por Ferrara,
de um jeito ou de outro, acabam sendo um reflexo das próprias indagações do
diretor. Sabe-se que assim como Ferrara pode ser considerado um autor
genial, também tem uma personalidade que não é das mais fáceis de compreender e
em todos seus trabalhos é perceptível uma gama de sentimentos conflitantes
pertinentes à condição humana (sua ou de qualquer um). Assim como o diretor
procura explorar as nuances execráveis do caráter humano, ele também se mostrar
um tanto crédulo aos aspectos e dogmas religiosos ou ao menos respeita um
bocado eles. Sim, Abel Ferrara acredita (pelo menos é o que passa) em
redenção através da remissão dos pecados.
Em Os Viciosos, o diretor
traz um exame de consciência sobre a maldade. Uma maldade aqui apresentada como
uma potente droga, em que o ser humano na condição de viciado, usufrui do
prazer que essa maldade pode proporcionar. Esse maldito vício nos leva a condição
de predadores, nos transformando em criaturas de sentimentos dúbios. Em um
primeiro momento, o diretor nos leva a crer que os personagens são vampiros
clássicos, como os já vistos em muitas obras de terror. Aqui, esses clássicos
monstros funcionam como analogias sobre um ser humano desprovido de aspirações
que não sejam o prazer de uma dose (no caso o sangue como o simbolismo do
medo). Adentrando na temática da obra, percebe-se que a verdadeira substancia
viciante advém do temor que podem proporcionar as suas presas. Quando a
estudante de filosofia Kathleen (Lili Taylor, sensacional), recentemente addiction (o
titulo em inglês faz todo o sentido), afronta suas vitimas, o jogo psicológico
aterrador que faz, lhe traz tanto prazer quanto o ato de sorver do sangue das
mesmas. O prazer que sente é descomunal, mas o vazio existencial também não
tarda a aplacar a sua alma, se é que ela tem uma. Uma das questões importantes
que o roteiro levanta é sobre a existência de alguma culpa/consciência de quem
comete tamanhas atrocidades.
Vejo Os Viciosos como
algo bem perto de uma pequena obra-prima. Não é menos visceral, atordoante e
reflexivo do que Vicio Frenético. Filmado belamente em um tom de sépia
preto e branco, talvez o que não o faça ser tão saudado é o seu viés mais
cerebral ou mesmo culto (o que não acho que seja um demérito), assim requerendo
do espectador algum conhecimento literário (mesmo que breve), principalmente
para entender as constantes citações que os personagens fazem a Sartre, Dante, Burroughs e
outros escritores e filósofos menos conhecidos, mas não menos importantes, como Protágoras.
Em contraponto as citações literárias, Ferrara criva uma trilha
sonora repleta de canções de rappers gangstas, como os do Cypress
Hill (banda famosa nos anos 90 por incitar o uso de drogas). Uma confluência
curiosa que acaba por fazer sentido no contexto do filme e ajuda a compor toda
a ambientação vagabunda e suja que o diretor atribui para a obra. A canção “I wanna
get High” (algo como “Eu quero ficar doidão”) pontua bem os momentos anteriores
ao uso de “drogas” (leia-se, submeter às vitimas a crueldades enquanto lhe
sugam o sangue), mostrando como atos degradantes podem ser atrelados a
situações felizes. Enquanto no decorrer do uso/efeito e também nas
conseqüências, o sentimento de decepção pecaminosa vem em digressões cruas e
das mais deprimentes.
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