Crítica: Batman (trilha sonora)

31 de maio de 2012 0 Comente Aqui!

Existe um número restrito de pessoas que possuem um estilo inconfundível de fazer cinema. A forma de expor os temas, os enquadramentos de câmera, ou como a música é programada nos seus filmes revelam a sua sensibilidade artística ímpar. De três décadas pra cá, mais um desvio padrão, me vem à cabeça de imediato Pedro Almodóvar, os irmãos Coen, Quentin Tarantino e os Davids, Lynch e Cronemberg. Mais um deve ser adicionado a essa lista: Tim Burton. O design meticuloso dos seus sets, os seus anti-heróis atormentados e seus roteiros meio surreais, frequentemente interseções entre o cômico, o romântico e o macabro, são as suas marcas autorais.

Tim Burton começou a sua vida profissional como desenhista para a Disney, mas não demorou de se sentir podado pelo trabalho zumbificante da companhia. Tchau Mickey. O seu primeiro longa cinematográfico foi As Grandes Aventuras de Pee-Wee (1985) com Pee-Wee Herman, alguém tão biruta e excêntrico quanto Burton, igualmente preso entre o mundo mágico da infância e as chatices e o cinismo do mundo adulto. O sucesso inesperado do filme lançou as bases para o seu próximo projeto: Os Fantasmas se Divertem (1988), com Michael Keaton, Alec Baldwin, Geena Davis e Wynona Ryder no elenco. O “alegre Grand Guignol” de Os Fantasmas se Divertem, como o classificou um jornalista do LA Times, provou que o cinema autoral do diretor valia o investimento. A Warner Bros então liberou a produção de Batman (1989), depois de quase dez anos de espera.

O Batman de Burton é bem diferente do seriado pastelão de TV, com o seu festival de onomatopeias (“Pow! Zap! Wham!”). O diretor resgatou o lado sombrio e noir do personagem de Bob Kane, levando em conta a reinvenção que Frank Miller fez do homem-morcego a partir de O Cavaleiro das Trevas (1986) e Batman: Ano Um (1987). Pra quem ainda não sabe, Miller é o cara que escreveu os HQs que deram origem aos filmes Sin City – A Cidade do Pecado300. Outra referência digna de menção foi A Piada Mortal (1988), escrita por outro titã do mundo dos quadrinhos, Alan Moore. Da mente inquieta de Moore saíram Watchmen (2009), V de Vingança (2006), A Liga Extraordinária (2003) e Do Inferno (2001), estrelado por Johnny Depp.

Para entender como foi importante reafirmar a essência de Batman, é bom comparar ele com outro herói da DC: o Super-Homem. O “homem de aço” tem força sobre-humana, voa, tem visão raio-X, é extraordinariamente veloz (mais rápido que a luz) e vem acoplado com um senso de honra e justiça inabaláveis. Só um escoteiro azul vindo do espaço para conseguir encarnar tudo isso. Já Batman é notoriamente um super-herói que não tem poderes sobre-humanos. Vive atormentado pela morte dos seus pais, e o seu desejo de vingança é tamanho que ele peita o submundo de Gotham City sozinho. Essas divergências se estendem também para as diferenças representativas entre as personas adotadas pelos nossos heróis. O patético-porém-simpático Clark Kent, o alter ego do Super-Homem, é um contraponto humanizante para o alienígena (quase) indestrutível. A fachada do homem-morcego, o playboy bilionário Bruce Wayne, é uma casca vazia. A sua obsessão com bancar o justiceiro de Gotham o deixa num estado psicológico perigosamente perto dos criminosos que persegue, dia e noite. É um personagem complexo, comparado à transparência ética de um Super-Homem.

Faz todo sentido que Batman enfrentasse logo no seu primeiro filme o seu arquirrival Coringa, interpretado magistralmente por Nicholson (a primeira e única escolha de Bob Kane). Já Michael Keaton enfrentou uma onda de protestos pelos fãs do quadrinho. Essa recepção nada calorosa chegou até o centro financeiro do mundo: o Wall Street Journal imprimiu uma matéria de 1º página questionando a contratação do ator. O motivo de tanta discórdia era Keaton ser visto até como um astro de filmes de comédia; o medo foi que a direção do filme tivesse uma recaída para tom cômico do seriado. Batman faturou R$ 411 milhões, ganhou um Oscar por “Melhor Direção de Arte” (muito merecido) e mudou para sempre o conceito hollywoodiano de super-heróis.

O multi-instrumentalista Danny Elfman, parceiro de Burton em 13 filmes, teve o seu quinhão no processo. Antes e depois de entrar de vez no cinema, Elfman teve uma carreira paralela com o Oingo-Boingo; a banda é conhecida principalmente pelo álbum Dead Man’s Party (1985) e os dois hits que saíram dele: “Weird Science”, do filme Mulher Nota Mil (1985) e “Stay”, que foi tema de novela Top Model (1989-1990), da Globo. A trilha de Bernard Hermann para O Dia em que a Terra Parou (1951) foi a que primeiro despertou o seu interesse pela música do cinema. Hermann, cujas trilhas clássicas emolduraram Quando Fala o Coração (1945), Psicose (1960) e Táxi Driver (1976), é uma influência perene em Elfman. Além disso, o gosto eclético de Elfman abrange de Stravinsky, gamelão à rock ‘n’ roll.

Figura controversa em Hollywood, Danny não é considerado um compositor “de verdade” no métier. Quando compôs para Batman, Elfman não sabia ler partitura e a sua predileção por MIDIs, sintetizadores, samplers e sequenciadores no lugar de instrumentação tradicional irritavam os seus colegas de ofício. Seria surpresa, então, os tradicionalistas torceram o nariz pra trilha? Que Batman não foi nomeado pelos membros do Oscar, BAFTA e Globo de Ouro como uma das melhores do ano, apesar de sua inegável importância histórica? Ou que ganhou “apenas” um Grammy (de “Melhor Composição Instrumental”) de uma premiação musical e não cinematográfica?

Vista por cima, Batman parece uma típica trilha sonora hollywoodiana. Tem um tema central (o de Batman) e o idioma é próximo dos compositores do romantismo tardio a lá Tchaikovsky, influência assumida de Elfman. Mas é ouvindo com calma que se percebe a musicalidade demente de Danny Elfman. O único a ter um leitmotif no filme é o personagem principal. Personagens importantes como Vicki Vale (Kim Basinger), Harvey Dent (Billy Dee Williams), Jim Gordon (Pat Hingle) – e até mesmo o Coringa – sequer tem temas específicos montados para eles. Mesmo assim, o tema do nosso herói pessimista é uma marcha em escala menor, diferentes daqueles temas heroicos e triunfantes a lá Indiana JonesSuper-Homem e Guerra nas Estrelas. E mesmo quando Elfman cai para uma orquestração mais convencional, ele exagera os seus maneirismos à ponto de virarem paródias.

Uma característica da linguagem musical de Elfman é sua preferência pela escala de tom inteiro. Explicando brevemente: a escala musical é uma sequencia de intervalos entre tons e semi-tons, no geral de 5 à 7 notas, escolhidas entre Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Sí e seus bemóis e sustenidos. Quando ouvimos uma música triste, é sinal que o compositor deve estar usando uma escala menor natural. Feliz? Escala maior natural. Etc. Quando ignora esse senso-comum, a escala de tom inteiro cria uma ambiguidade sonora: o seu formato simétrico impede o destaque de que qualquer nota, o que soa positivamente estranho (ou até sinistro) para quem se acostumou com o bê-á-bá musical. Elfman associa essa escala tanto à Batman quanto ao Coringa. Essa artimanha fortalece a conexão entre ambos – afinal, eles são dois lados da mesma moeda – e explora a ambiguidade de Bruce Wayne, tragicamente preso no passado, remoendo na escuridão da Batcaverna o evento traumático que definiu a sua missão de vida.

O background rock/pop de Danny Elfman e a sua falta de um treinamento formal em música foram malvistos em Hollywood por muito tempo. Isso não impediu o compositor predileto de Tim Burton de criar trilhas incríveis como as de Edward Mãos de Tesoura (1990), O Estranho Mundo de Jack (1993), Gênio Indomável (1997), Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas (2003) e Milk (2008). Semelhante à Burton (e Batman), Danny sempre foi um forasteiro. O seu estilo único de fazer as coisas sempre foi considerado bizarro, fora dos padrões. E que nem Burton e o homem-morcego, Danny se impôs, mostrando o seu valor no widescreen.

Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.

0 Comente Aqui! :

 
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...