Crítica: The Song Remains the Same (trilha sonora)

12 de agosto de 2011 2 Comente Aqui!

Se um dia houve um álbum que me converteu ao rock ‘n’ roll, com certeza foi esse. Numa fatídica noite do outono de 1991 resolvi tirar a poeira da vitrola com o The Song Remains the Same (1976), descoberto entre a coleção de vinis dos meus irmãos mais velhos. Não sei se foi minha mania de ser diferente, mas comecei a ouvir The Song Remains the Same pelo segundo LP. Coloquei o lado A e fiquei no escuro, em silêncio, ouvindo John Paul Jones introduzir “No Quarter” com seu Fender Rhodes. A virada repentina de John Bonham e os acordes dissonantes de Jimmy Page mudam aquele clima de neblina e mistério, e a banda se entrega com gosto à um dos refrões mais cabulosos de sua carreira. Belo e ao mesmo tempo sombrio, é um excelente exemplo daquele contraste entre "luz e sombra", uma marca registrada do grupo. Além dos primeiros cinco primeiros da música, o que me fisgou verdadeiramente foi o improviso de Jimmy Page no meio de "No Quarter". São 4 minutos e 6 segundos de solo e não tem uma nota sequer fora do lugar. Todas têm um propósito, um sentido único e especial. Em suma... Ouvir os doze minutos e meio de “No Quarter” não foi só bom: foi uma experiência mágica. Quando a música seguinte – aquela tal de “Stairway to Heaven” – terminou, eu queria ser o próximo Jimmy Page. Tempos depois comprei uma guitarra, deixei o cabelo crescer e gastei o dinheiro da merenda em CDs. Minha vida mudou, e pra melhor.

Voltemos a 1973, um ano de grandes realizações para o Led. Houses of the Holy, seu quinto álbum, estava no topo das paradas e a turnê americana do disco fez história. O concerto da banda no Tampa Stadium, na Flórida, quebrou o recorde do Beatles no Shea Stadium, atraindo um público pagante de 58 mil e oitocentas pessoas. O encerramento triunfal dessa turnê foi no Madison Square Garden em Nova Iorque. Os dias 27 a 29 de Julho foram reservados para uma filmagem convocada às pressas pelo empresário do grupo, Peter Grant, e serviriam de base para o que no futuro se tornaria The Song Remains the Same.

Três anos e muita enrolação depois, The Song Remains the Same estreou no segundo semestre de 1976. O filme teve uma recepção morna. A crítica levantou um problema: a performance errática da banda, inspirada em alguns momentos e visivelmente cansada em outros. Page chegou a usar a palavra “medíocre” pra traduzir a insatisfação com o desempenho do grupo no final daquele verão de 1973. Depois que The Song Remains the Same saiu os fãs ficaram implorando pelo lançamento de outras apresentações inéditas, incluindo as do Royal Albert Hall (1970), Earl’s Court Arena (1975) e a do Knebworth Festival (1979). Os pedidos foram finalmente atendidos com Led Zeppelin (2003), que rapidamente se tornou um dos DVDs mais vendidos - da história - nas seções de música.

Parte da implicância dos jornalistas com The Song Remains the Same recaiu sobre as “seqüências oníricas” do filme, onde cada um dos integrantes, mais Grant e o tour manager, Peter Cole, viviam suas fantasias na tela. Esses trechos do filme forneceram um insight valioso a respeito de uma banda que era notoriamente avessa à entrevistas. Eles também ilustram as tentativas, às vezes risíveis, de transpor visualmente as convicções pessoais dos membros da banda. Na primeira delas, Peter Grant e Cole são mafiosos dos anos 1930, metralhando os inimigos com tommy guns. Na vez de John Paul Jones, ele toca um cravo barroco durante o solo de “No Quarter” e depois cavalga mascarado, noite adentro, numa missão tão secreta que nem a platéia descobre o que está acontecendo. Em “Rain Song” e na faixa título, Robert Plant aparece vestido como um guerreiro galante, espada em punho, pronto para salvar a donzela em perigo. É uma fantasia que reflete seu entusiasmo por mitologia celta, O Senhor dos Anéis e as lendas do Rei Artur. A seqüência de John Bonham, durante o solo de “Moby Dick”, é a mais convencional. Uma hora ele está á mil na estrada montado numa Harley-Davidson, e na outra está na sua fazenda em Worstershire com a família.

As seqüências mais comentadas de longe foram as de Jimmy Page. Durante o tradicional solo de violino de “Dazed and Confused”, Page escala, numa noite de lua cheia, uma montanha na frente de sua propriedade em Boleskine, a antiga mansão do mago Aleister Crowley (1875-1947) às margens do famoso Loch Ness. Lá no topo ele encontra um ancião segurando um cajado e uma lamparina. Segundo o guitarrista, essa figura é uma representação do “Eremita”, o nono Arcano maior do tarô. Essa carta é o arquétipo da sabedoria e inteligência (a “luz da verdade”, emitida pela lâmpada), além do isolamento requerido para mergulhar si mesmo, em busca do autoconhecimento. É uma figura da qual Page, naquele momento da vida dele, claramente se identificava. Num segundo momento, vemos Jimmy se transformando no ermitão, e o ermitão com seu cajado “pinta” ao redor de si uma aura de 11 cores. Esse arco de luz representa Crowley, do qual Page era um seguidor fervoroso e a majik em geral, da qual ele continua um praticante.

Coincidindo com o anúncio do show da “volta” do Led Zeppelin em dezembro de 2007, na O2 Arena de Londres, a Swan Song (gravadora da banda) soltou uma reedição remixada e remasterizada de The Song Remains the Same. O serviço ficou a cabo de Kevin Shirley, responsável pelo álbum triplo How the West Was Won (2003), que reuniu uma série de shows antigos da banda na Califórnia. Supervisionando o trabalho do engenheiro de som ficou Robert Plant. O mix atual tem um nível de clareza sem precedentes, substituindo a versão anterior de Eddie Kramer (conhecido por gravar os discos de Jimi Hendrix). A ordem das músicas mudou, agora seguindo com fidelidade a apresentação do Madison Square Garden. Isso significa que seis faixas adicionais passaram a integrar o disco, algumas inéditas: “Misty Mountain Hop”, “The Ocean” e “Over the Hills And Far Away”.

Fora as boas novas, não foi um negócio interesse deixar Robert Plant no leme desse projeto. O vocalista saiu cortando tudo o que considerava “excessivo” no álbum original. Músicas foram encurtadas e vários “oh, babys” voaram pela janela. Até o famoso “Does anyone remember laughter?” de “Stairway to Heaven” quase desapareceu. A pior mancada de todas, em minha opinião, foi em “No Quarter”. Trechos consideráveis do solo de Jimmy Page – aquele que me fez querer ser um guitarrista – foram despejados no lixo. O crescendo funk, que lentamente conduzia a música ao solo propriamente dito, foi eliminado; e o final apoteótico foi substituído por uns fraseados de guitarra murchos, sem sal, sem vida.

Isso tem explicação: depois da explosão punk, o Led Zeppelin virou o sinônimo de tudo o que estava errado no rock. Seu chauvinismo perverso foi condenado, e a atitude esbanjadora da banda – fretando um Boeing só pra eles e seu entourage – era malvista por uma geração de punks na fila do desemprego. A maioria da hostilidade dirigida à banda, no entanto, tinha a ver com o departamento musical: especificamente, ao virtuosismo e as improvisações auto-indulgentes do grupo. Uma nova leva de formadores de opinião decretou que essa “masturbação” instrumental era a antítese daquela energia e imediatismo dos primórdios do rock: músicas curtas, diretas, sem muita frescura. Adjetivos como “pomposo” e “ultrapassado” passaram a colorir o material da banda veiculado na imprensa especializada.

Devido a essa reação hostil Robert Plant, na era pós-punk, carregou o legado do Zeppelin como um fardo, um carma ruim do qual não conseguia se livrar. Depois que a “maldição do Led Zeppelin” abateu-se sobre ele e sua família – supostamente culpa de Page e seu fascínio pelo ocultismo – a tragédia pessoal de Plant fez Jimmy Page dá-lo plenos poderes sobre o destino do grupo, uma reviravolta da qual sentimos os efeitos até hoje. Seu poder era tanto que o levou ao sacrilégio: Plant se recusou por muito tempo a cantar “Stairway to Heaven”, sem dúvida o melhor momento da banda. Até na época do Page & Plant (1994-1998) ele teve seu desejo acatado. Foi essa postura inflexível de liderança, mais sua vergonha pelos "excessos" do grupo, que o levou a mexer obsessivamente no áudio da nova versão de The Song Remains the Same.

Cameron Crowe – diretor de Jerry Maguire (1996) e Quase Famosos (2000) – escreveu no encarte original de The Song Remains the Same o seguinte: “Pela primeira vez, uma performance do Led Zeppelin não é só uma memória. O filme, assim como essa trilha sonora, poderá ser vivenciada repetidamente.” 35 anos depois as palavras de Cameron Crowe ainda soam verdadeiras. Talvez “No Quarter” tenha perdido um pouco do encanto nesse meio tempo, é claro. Meu gosto musical expandiu desde então, e descobri outras definições de “bom”, sejam elas o “hate pop” do Nine Inch Nails, as proezas de Miles Davis ao trompete ou o folk-rock do Simon & Garfunkel... Mas toda vez que eu pego The Song Remains the Same pra escutar, a magia do Led continua lá.

E “No Quarter” ainda é minha música favorita.

O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.

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