Crítica: Balada Sangrenta (trilha sonora)

25 de agosto de 2011 0 Comente Aqui!

As ondas AM, como vocês já devem saber nessa altura da vida, têm um alcance maior do que as ondas FM. As ondas de amplitude modulada percorrem grandes distâncias – até dezenas de quilômetros – e por isso os moradores das Índias Ocidentais conseguiam sintonizar as estações do Sul dos Estados Unidos. Os jamaicanos vibravam com aquele som moderno que vinha de Miami e Nova Orleans: era o R&B (rhythm & blues) de James Brown, The Drifters e The Platters o dia inteiro no ouvido. Não demorou muito para os músicos da ilha darem um tempero creole ao R&B, moldando ele a partir da herança das big bands locais e do mento, o primeiro ritmo genuíno da Jamaica. Assim nasceram o ska e depois o rocksteady, para a alegria dos soundsystems, precursores dos nossos trios elétricos. O calor do Caribe e doses cavalares da ganja deram um jeito de empenar aqueles ritmos serelepes e lá por volta de 1967, o rocksteady virou reggae, e o reggae virou revolução.

Essa música dos “sofredores”, pulsando no coração de Trenchtown, esteve desde sempre associada com a mensagem espiritual do rastafarianismo. Fundada pelo sindicalista jamaicano Marcus Garvey (1887-1940), ela pregava um êxodo para a Mãe África, o consumo ritualístico de cannabis sativa e o culto à Hailé Selassié I, imperador da Etiópia, tido como a encarnação viva de Jah (diminutivo de Jeová). Parte da crença nesse messias negro é fundamentada pelo Kebra Nagast, um dos livros sagrados da Igreja Ortodoxa Etíope. Ele afirma que a família real era descendente do rei bíblico Salomão. Reza a lenda que Salomão fugiu para a Etiópia quando os Babilônios queimaram seu templo, e levou consigo a Arca da Aliança – o baú que continha as Tábuas da Lei, as pedras onde os Dez Mandamentos tinham sido gravados. Na arena política, o monarca africano se destacou na Liga das Nações pela sua apaixonada defesa contra as agressões imperialistas da Itália. A subseqüente derrota que o “Leão de Judá” infligiu ao exército de Mussolini fez dele um símbolo de resistência no Terceiro Mundo.

Para além da conexão rasta/reggae, o foco de Balada Sangrenta (The Harder They Come, 1972) é a dura realidade dos guetos de Kingston. A melhor representação desse experimento perverso em darwinismo social é o famigerado pistoleiro Vincent “Ivanhoe” Martin, vulgo “Rhyging” (“selvagem” ou “nervoso” no patois jamaicano). Uma fuga espetacular da penitenciaria de Kingston e os tiros que trocou com a polícia o transformaram numa figura folclórica, o “Robin Hood” da Jamaica. Rhyging foi o rude boy original, ídolo das gangues juvenis que aterrorizavam Kingston.

No filme, Ivan é mais um “caipira” tentando a sorte na cidade grande. Mal salta do ônibus e já se dá mal, sendo assaltado à luz do dia. Já é noite quando Ivan, sem um puto no bolso, chega à casa da mãe. Ela, doente e transtornada, lhe recusa abrigo, e pede pro filho procurar ajuda na congregação local. Nesse meio tempo Ivan corre atrás de um emprego, mas a falta de oportunidade lhe obriga a mendigar. Sem onde cair morto, ele finalmente procura o pastor (Basil Keane) da congregação e é prontamente acolhido. Tudo parece estar entrando nos eixos até o padre descobrir que Ivan está de olho na sua protegida, a virginal Elsa (Jane Bartley), e vice-versa. Ivan acaba expulso da paróquia, mas antes de sair arranja uma briga com Longa (Elijah Chambers), o ajudante do padre, e desfigura seu rosto a facadas. Ivan pára na cadeia, mas é solto em pouco tempo. A partir daí ele ingressa no mundo do crime, onde fatalmente se tornará mais uma vítima do “shitstem.”

Na proa de Balada Sangrenta, no papel do temível Rhygin, está Jimmy Cliff. A carreira de Jimmy tem uma relação especial com o Brasil, especialmente de nós baianos. Ele se apresentou na Fonte Nova ao lado de Gilberto Gil, gravou o hit “Me Abraça Me Beija” com Margareth Menezes e contou com a participação do Olodum no álbum Breakout (1992). Hoje Jimmy mora na Bahia com sua mulher e filho, e continua na ativa tocando com Didi (irmão de Pepeu Gomes).

Tanto a trilha e o filme estão impregnados com o credo dos rastamen. “Rivers of Babylon” mesmo, do Melodians, aborda de um dos temas favoritos no reggae: a Babilônia, presença maligna nas vidas da classe trabalhadora jamaicana. No último livro do Novo Testamento, o Apocalipse de João, a Babilônia é uma cidade opulenta, um covil de luxúria e ganância. A justiça tarda, mas não falha, e no fim dos dias ela recebe toda a extensão da fúria divina, ardendo pelos seus pecados. Para os rastas a Babilônia é um símbolo de opressão, a manifestação do sistema corrupto que escraviza o homem negro, seja ela a polícia, os políticos em geral ou até a Igreja Católica, vista como uma opositora ao eleito de Deus, Hailé Selassié.

Como muitos músicos da ilha, Jimmy Cliff conheceu a Babilônia de perto, escolado que era no jogo sujo das gravadoras jamaicanas. Parte do roteiro de Balada Sangrenta é baseado nas suas experiências com o show business local. Numa das cenas do filme o empresário Hilton (Bob Charlton) oferece uma bagatela a Ivan para comprar o seu hit, “The Harder They Come”. Ele se recusa, e paga caro por isso: sua música está proibida de ir ao ar e seu disco é banido das lojas. Quando Ivan cede, Hilton a tira de circulação novamente, pra dar uma lição naquele aprendiz de rude boy. “Faço os sucessos, não o público. Eu digo os DJs o que tocar. Entendeu?”, esbraveja Hilton. Humilhado, Ivan assente. Essa situação “aconteceu comigo”, confessa Jimmy. Desiludido com o mundo da música, Ivan – agora próximo do seu alter-ego, “Rhyghing” – entra para o comércio de ganja, mas lá também encontra a Babilônia: o comandante do tráfico na ilha é um policial, o detetive Ray Jones (Winston Stona).

The Harder They Come, a trilha, foi o primeiro grande lançamento internacional do reggae roots, antecipando Catch A Fire (1973) do Wailers. Os dois foram distribuídos pela Island Records de Chris Blackwell, o homem que fez do reggae um fenômeno mundial. Nas seleções de The Harder They Come as características-base do gênero já definidas: a “cozinha” destacada no mix e o baixo com aquele timbre abafado, sem brilho – a conjunção de cordas velhas com o knob (ou quinóbi, como diz o bom soteropolitano) do tom no zero. No reggae, o baixo tem um papel proeminente: suas linhas sinuosas ditam o groove e a melodia da música. A guitarra, ao contrário do rock ‘n’ roll, tem um papel menor: ela é quase um instrumento percussivo, seus poucos acordes de pestana marcando o ritmo. No disco, algumas faixas se aproximam de suas raízes no black music americano ou nos ritmos da ilha. Em “Many Rivers to Cross” de Cliff o gospel fala alto, e dá pra enxergar o mento de “Sweet and Dandy”, cantada pelos Maytals.

Antes mesmo de Bob Marley sacudir seus dreadlocks mundo afora, Balada Sangrenta já estava fazendo papel de embaixador do reggae em terras estrangeiras. Contra tudo e todos, aquele som militante saído das favelas de Trenchtown conquistou os corações e mentes da juventude, ganhando espaço dentro dos clubes punk londrinos e nas “radiolas” de São Luís do Maranhão. Já cantava o fora-da-lei favorito da Jamaica:

'Cause as sure as the sun will shine 
I'm gonna get my share now, what's mine 
And then the harder they come 
The harder they fall, one and all 
Ooh, the harder they come 
Harder they fall, one and all

Fogo na Babilônia!

O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.

0 Comente Aqui! :

 
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...