Crítica: Let It Be (trilha sonora)

22 de julho de 2011 3 Comente Aqui!

A deificação dos Beatles torna qualquer avaliação objetiva do seu legado não só improvável - ela beira ao impossível. Os garotos de Liverpool tinham o dedo no pulso da cultura pop dos anos 1960: deixar o cabelo crescer, experimentar drogas alucinógenas, absorver a sabedoria milenar das religiões orientais e fazer o rock ser levado a sério – eles fizeram tudo isso e muito mais. A conquista do Beatles, chegar ao toppermost of the poppermost, não ia ser fácil, e eles sabiam disso. Tiveram aquele começo difícil na Alemanha, quando ralavam nos clubes de Hamburgo sobrevivendo à base de cerveja e dexedrina. Depois veio a Beatlemania, eles fugindo das fãs histéricas, pulando de avião em avião enfiados naqueles terninhos Pierre Cardin... E não tem como esquecer o desbunde psicodélico de Sargeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), levando o rock à novas direções, à caminhos nunca antes explorados.

Infelizmente, toda aquela energia e entusiasmo dos tempos da “Invasão Inglesa” já tinha se esvaído com a chegada de Let It Be (1970). Os Beatles estavam esgotados – financeiramente, emocionalmente, espiritualmente. A solução, foi decidido, era voltar a um rock ‘n’ roll básico, sem firulas e sem a alquimia sonora do Sir George Martin. Uma equipe de cinegrafia iria acompanhar esse recomeço, registrando a evolução do novo disco num documentário com o título provisório de Get Back. O gran finale do filme seria um show, seguindo o modelo de Os Reis do Iê-Iê-Iê (1964). Dizer que as coisas não correram como previsto é redundante e cruel. Let It Be só fez expor à luz do dia que a banda estava com os dias contados.

Yellow Submarine já dava sinais que ia afundar desde a morte acidental de Brian Epstein (1932-1967), o primeiro empresário do grupo, forçando os rapazes a virarem homens de negócios da noite pro dia. Isso significava assumir o controle da Apple, criada para consolidar a liberdade financeira e artística da banda, além de angariar novos talentos. (James Taylor foi uma das descobertas do selo). Para o azar do Beatles, a Apple acabaria por ser o pivô de sua separação. Os ânimos acirrados durante a gravação do álbum homônimo (vulgo “White Album”) também fizeram sua parte. A parceria Lennon-McCartney começou a ser desfeita e Ringo Starr queria sair da banda. Ele andava insatisfeito com a sua competência técnica, sentindo-se diminuído por uma nova geração de bateristas virtuosos a lá Keith Moon (The Who) e Mitch Mitchell (The Jimi Hendrix Experience). O fator-mor de estresse durante a gravação de The Beatles (1968), no entanto, foi a presença incômoda da nova mulher de John.

Sim, ela mesma. Yoko Ono.

Desde que consumaram seu amor em maio de 1968, enquanto a mulher do Beatle (Cynthia) estava de férias na Grécia, John e Yoko se tornaram inseparáveis. Lennon reclamava que as pessoas à sua volta, principalmente seus companheiros de banda, ficavam tensos com sua presença, e “tudo isto porque só queríamos estar juntos a todo instante.” A verdade é que Yoko Ono envenenava sua relação com os outros Beatles. Ela se metia nas reuniões do grupo, agindo como se fosse uma quinta Beatle, mas na intimidade falava mal daquele conjunto pop "adolescente" e sua musiquinha “descartável”.

Get Back tinha sido idéia de Paul McCartney – ele gostava de manter o grupo unido, motivado, trabalhando por um objetivo em comum. Essa proatividade tinha um lado negativo: Paul dava a impressão que queria liderar o grupo. (É coincidência que o foco das câmeras esteja sempre nele?) Em 2 de Janeiro de 1969 a banda se instalou no Twickenham Studios, onde tinham filmado trechos de Help! (1965). Fora Paul, o mentor do projeto, o resto estava visivelmente disperso. Ringo Starr, com uma cara de tédio mortal; George Harrison, olhando atravessado para Paul; e John Lennon lá sentado, apático, chapado de heroína, sem desgrudar um segundo sequer de Yoko. Outros fatores interferiram no andamento do documentário. O frio e a umidez de Twickenham foi um deles, gelando os ânimos. A falta de privacidade era o outro. As câmeras indiscretas de Michael Lindsey-Hogg captavam em 16 mm não só o processo criativo dos Beatles, mas também o ar carregado do ambiente. Entre os ensaios e as reuniões de como conduzir a produção do filme, sobravam pitadas de sarcasmo e tiradas irônicas.

Numa das cenas antológicas de Let It Be, Lindsey-Hogg filma uma troca de farpas histórica entre George e Paul. Há muito George queria sair debaixo das asas de Lennon e McCartney e se afirmar como compositor. Era profundamente irritante para George ouvir as críticas condescendentes de Paul. Chegou ao ponto dele querer ensinar a George como tocar guitarra – até as notas dos solos ele queria ditar! George perdeu sua paciência de Jó, se virou e disse pra Paul: “Não me importo, toco o que você quiser ou não toco, se você não quiser. Faço qualquer coisa que você quiser”, com toda aquela fina ironia britânica. Pra variar Paul não nem deu bola pra esse “chilique” e seguiu em frente, como se nada tivesse acontecido. Cinco dias depois George pediu as contas. Paul viu que tinha forçado a barra e voltou atrás.

Em meados de mês os Beatles abandonaram Twickenham e se instalaram na Savile Row. De imediato a atmosfera aconchegante dos estúdios da Apple surtiu o efeito desejado. A chegada de Billy Preston ajudou a dissipar a tensão restante. Á convite do seu bom amigo George, o exímio tecladista – sideman de Ray Charles e Cliff Richard – pôs panos quentes na situação com seu jeito naturalmente bonachão. A banda deu uma trégua e se comportou direitinho a partir de então. O problema é que Billy não tinha como durar na banda. Ele nunca deixou de ser um músico convidado, e sua crescente participação nas decisões do grupo começou a incomodar o séquito do “Fab Four”. Os Beatles seriam eternamente Ringo, George, Paul e John. Ninguém mais, ninguém menos.

Era chegada a hora de planejar o concerto final de Get Back, o primeiro desde os meados de 1966, quando abandonaram a estrada cansados daquela gritaria ensurdecedora e das ameaças de morte. Sugestões de local foram dadas. Um barco? Um anfiteatro grego? A que vingou foi no telhado da própria Apple. Não teria aquela burocracia infernal de organizar um show que comportasse uma banda do porte do Beatles, e assim que terminassem o set eles poderiam simplesmente partir pra casa. Em 30 de Janeiro, sem avisar, começaram a tocar as músicas do novo disco, gerando um tumulto em Savile Row. Ringo torcia pra ser preso pelos policiais – daria um final excelente para Get Back. Pra decepção dele ninguém foi arrastado para o xilindró; os “tiras” foram muito polidos e pediram educadamente para o conjunto encerrar suas atividades.

De todas as músicas que juntas se tornariam Let It Be, a mais lembrada é sem dúvida a faixa título. Paul dedicou “Let It Be” à sua falecida mãe – e não à Virgem Maria, como muita gente pensa. Durante esse período de cabo de guerra com John, Paul teve um sonho. Mary vinha até ele, lhe consolando, dizendo que tudo ia ficar bem. O hit de Let It Be, no entanto, foi outra de Paul: “Get Back”. Era uma música que defendia, de forma bem-humorada, pessoas que eram alvo de preconceito pelos “caretas”. A primeira estrofe falava sobre “maconheiros” (“Jo Jo left his home in Tucson, Arizona for some California grass”). A segunda, de travestis (“Sweet Loretta Martin thought she was a woman but she was another man”). A terceira – e mais polêmica – era uma crítica dirigida aos racistas do National Front, partido britânico que visava limitar a imigração do país. Essa estrofe foi eliminada pelos Beatles, com medo de que a imprensa marrom fosse distorcer a sua mensagem. A ironia de frases como “Don’t dig no Pakistani taking all the people’s jobs” facilmente se perderia fora do contexto.

As sessões de Get Back / Le It Be foram um fiasco. Lá estavam quase 30 horas de takes mofando em Abbey Road, e ninguém queria chegar nem um milímetro perto daquela pilha de fitas. Gravar Let It Be foi traumático, e encarar a mixagem do disco era reviver a dor daquele parto complicado. A tentativa desesperada de Paul para unir os Beatles acabou por afastar os quatro ainda mais. Trocadilhos à parte, eles deixaram Let It Be pra lá e se juntaram mais uma vez pra compor Abbey Road (1969) – o de facto último álbum do Beatles. Restava ainda o “x” da questão: o que fazer com Get Back? Remixá-lo? Lançá-lo? Ou abandoná-lo de uma vez por todas?

Anos antes do lançamento de Let It Be, John Lennon declarou para a imprensa que caso um dia os Beatles pensassem em usar um produtor além de George Martin, eles certamente chamariam Phil Spector. O excêntrico produtor do Beach Boys (entre milhares de outros) tinha como assinatura a lendária wall-of-sound. Spector fazia seus músicos tocarem os mesmos fraseados em instrumentos de timbres diferentes e combinavam eles numa densa massa sonora, o equivalente a uma orquestra pop. Outro hábito saudável dele era tirar o máximo da tecnologia disponível, fazendo uma mesa de oito canais render de um jeito que nenhum engenheiro de som imaginaria. Apesar das excelentes credenciais de Spector, Lennon ficou na dúvida de o quanto a “parede sonora” do produtor afastaria Let It Be da sua proposta – quatro caras, tocando juntos, mandando ver. Phil Spector foi convocado por Lennon pra um testdrive: ele iria produzir “Instant Karma!”, o compacto do Plastic Ono Band. Fazendo jus ao nome, “Instant Karma!” foi um hit instantâneo. Phil Spector estava abordo.

Spector fez o que pôde para salvar as sessões. Espichou o minuto e meio de “I Me Mine” pra uma duração razoável. Tacou efeitos de eco em “Let It Be” para dar profundidade à gravação. Manteve a ideia do produtor anterior, Glyn Johns, de adicionar trechos dos bate-papos da banda entre as faixas, conferindo um ar mais espontâneo ao disco. Phil Spector só pisou na bola com a orquestração espalhafatosa de “The Long and Winding Road”. Ele incrementou a faixa com harpas, trompas e um coro feminino, uma medida para abafar o baixo desafinado de John Lennon. Spector foi ainda mais longe: para acomodar tanta “gente” ele apagou um canal com os vocais de McCartney. Paul, que nem consultado foi pra esse mix, ficou horrorizado com a “mutilação” de sua música e citou isso como um dos motivos para sair da banda, quando a dissolução dos Beatles virou caso de tribunal. Macca passou os próximos 30 anos querendo meter a mão nesse mix – o que finalmente conseguiu com Let It Be... Naked (2003).

Depois de décadas engavetado, a Apple finalmente lançou Get Back – ou melhor, a versão crua de Let It Be, sem a tagarelice entre as músicas e sem o verniz sonoro de Phil Spector. As fitas originais estavam praticamente intactas e o Pro Tools do Abbey Road fez o resto: removeu diversos ruídos das gravações, inclusive o barulho do vento captado pelos microfones durante o show no telhado da Apple. Uma alteração visível foi a ordem e a nova seleção de faixas. “Get Back” agora abria o disco e “Let It Be” o finalizava. Músicas meeiras como “Dig It” e “Maggie Mae” foram descartadas. Essa versão de Let It Be finalmente fez justiça à “Don’t Let Me Down”, uma das baladas mais viscerais da banda, relegada na época para o lado B do single de “Get Back”. Ela aparece no documentário, no show do telhado da Apple, mas por algum motivo Spector decidiu eliminá-la do Let It Be original.

Apesar de ter sido massacrado pela imprensa britânica, Let It Be ganhou um Oscar e um Grammy e vendeu muito bem do outro lado do Atlântico. Isso pouco aliviou o clima pesado que reinava no QG do Beatles. Foi um fim amargo, o da banda: Lennon e McCartney estavam lavando roupa suja em público e a confusão relativa às finanças caóticas da Apple ainda duraria um bom tempo. Cada um seguiu seu caminho, e a tão sonhada reunião da banda pelos fãs acabou em dezembro de 1980, quando Mark David Chapman assassinou John Lennon em frente ao seu prédio. Let It Be, o documentário, também teve um fim melancólico. Depois de uma aparição relâmpago no formato VHS ele sumiu de vista. No mês do lançamento de Let It Be... Naked o diretor do filme, Lindsey-Hogg, deu uma entrevista dizendo que a Apple ia lançar Let It Be em DVD, numa edição que viria com um disco de extras recheado de entrevistas e cenas descartadas – muitas delas com outras brigas embaraçosas eternizadas em celulóide. Preocupados em zelar pela reputação dos Beatles, Paul e Ringo acharam melhor barrar o lançamento do DVD de Let It Be.

Os Beatles conseguiram conciliar idealismo artístico com pretensões comerciais, e dimensionar seu impacto no mundo pop, como eu tinha dito anteriormente, é impossível. Se por um lado Let It Be mostrou o grupo se desintegrando, por outro ele é um documento audiovisual histórico da maior banda de rock de todos os tempos, fazendo o que sabiam fazer de melhor... Mas o divórcio, doloroso e público demais, finalmente veio. O abril de 1970 foi um mês de luto para milhões de Beatlemaníacos. A magia se foi... Aí devemos lembrar as sábias palavras de Mary, a mãe de Paul. “Deixe estar”, disse ela, tudo se ajeita.

Let it be.

O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.

3 Comente Aqui! :

  • Karina disse...

    Não precisaria nem dizer que o Let it Be é um álbum inferior aos anteriores, mas as histórias dos bastidores explicam o porquê. Excelente texto, Zé.

 
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