Crítica: Crepúsculo dos Deuses (trilha sonora)

16 de junho de 2011 1 Comente Aqui!

Roger Ebert – o único crítico de cinema a ganhar um Prêmio Pullitzer – declarou que Crepúsculo dos Deuses (1950) “continua sendo a melhor obra gramática sobre o cinema” até hoje. Seu diretor, Billy Wilder, ergueu um espelho sombrio à cultura hollywoodiana, mostrando seu lado corrupto e insensível. Seu título original (Sunset Boulevard) é sugestivo: ao mesmo tempo em que a avenida é sinônima de glamour californiano, “Sunset” (pôr do sol), no contexto do filme, implica a idéia de algo que perdeu seu brilho e está fadado ao esquecimento...

No papel do narrador oculto de Crepúsculo dos Deuses está Joseph C. Gillis (William Holden), um roteirista endividado no alto de sua maré de azar. Ele não tem perspectiva de trabalho, deve 3 meses de aluguel e seus credores estão prontos pra tomar seu carro. Depois de tentar – em vão – conseguir capital para pagar suas dívidas, Joe decide fugir e voltar para Ohio, “para aquele emprego de US$ 35 por semana no jornal.” Seus planos são frustrados quando os credores avistam seu Plymouth conversível e correm para confiscá-lo. Durante a perseguição, o pneu do carro fura e Joe para por acidente na garagem de um velho casarão na Sunset Boulevard.

Quando Joe entra naquele palacete decrépito, a convite do mordomo do lugar, ele descobre que está no suntuoso lar de Norma Desmond (Gloria Swanson), estrela do cinema mudo. É como entrar numa cápsula do tempo: Gloria vive do passado, enfurnada na sua mansão revendo seus próprios filmes com o fiel mordomo, Max Von Mayerling (Erich Von Stroheim). Quando Norma descobre que Joe não é o agente funerário que estava esperando e sim um roteirista, ela desata a falar mal de microfones, Technicolor e Joe e sua laia que "fizeram uma corda de palavras e enforcaram o cinema!” Depois de alguns minutos tensos, onde Norma parece que vai voar no pescoço de Joe a qualquer momento, ela lhe entrega uma pilha de papéis cheios de rabiscos ininteligíveis. É um roteiro, de sua autoria, baseado na ópera Salomé de Richard Strauss (1864-1949). Joe, pronto pra ser comprado, aceita US$ 500 por semana para revisar aquele argumento. A partir daí ele é arrastado pelo redemoinho da loucura de Norma, uma armadilha da qual talvez nunca escape...

Parte do charme de Crepúsculo dos Deuses é o filme cortar perigosamente rente à realidade. Aqueles moradores lunáticos da mansão de Sunset tem paralelos inconfundíveis com as carreiras de Swanson e Von Mayerling. Ambos eram figurões na década de 20 no auge do cinema mudo: ela uma atriz, ele um poderoso diretor. Para botar mais lenha na fogueira, Wilder colocou em cena alguns astros daquele tempo: Buster Keaton, H. B. Warner e Anna Q. Nilsson. Eles aparecem no filme jogando bridge com Norma. “Penso neles como bonecos de cera”, comenta Joe em off, do seu jeito durão e sarcástico. O clima autoreferencial não pára por aí: a Paramount, estúdio que bancou o projeto, deixou Wilder filmar o set do épico Sansão e Dalila (1949) do diretor Cecil B. DeMille, que interpreta ele mesmo em Crepúsculo dos Deuses, quando recebe sua velha amiga Norma no estúdio.

Depois do lançamento de Crepúsculo dos Deuses, Billy Wilder ficou com medo de alienar seus colegas. Ficou com medo de que o enxergassem como um traidor, pelo retrato cínico e amargo que o filme pintou da indústria cinematográfica americana. Apesar de ovacionado pela crítica, muita gente achou que Wilder de fato pegou pesado. Dizem, à boca pequena, que Crepúsculo dos Deuses não ganhou o Oscar de Melhor Filme justamente por isso. Outros disseram à boca grande mesmo: foi o caso de Louis B. Mayer, o chefão da MGM, que fez questão de chamar Wilder de “canalha” à queima-roupa, na cara do diretor.

Eis que entra na história Franz Waxman (então Wachsmann), colega de Billy Wilder dos tempos de UFA, o poderoso estúdio da República de Weimar. Os dois emigraram pra os Estados Unidos, fugindo da Alemanha de Hitler. Apesar do seu inglês rudimentar, Wilder se tornou um diretor requisitado; já era lendário quando rodou Crepúsculo dos Deuses. A chegada de Waxman também causou frisson em Hollywood, a começar por A Noiva de Frankenstein (1935): o nível elevado de dissonância dessa trilha foi um choque para ouvidos desavisados. As técnicas modernistas de Franz Waxman logo se tornaram hors-concours para filmes de terror. Outro destaque de sua carreira foi Rebecca, a Mulher Inesquecível (1940) de Alfred Hitchcock, onde experimentou com instrumentos eletrônicos (as ondas Martenot), intensificando o clima paranóide do filme.

Na trilha de Crepúsculo dos Deuses, Franz Waxman utiliza fartamente o leitmotif (ou leitmotiv), recurso Wagneriano de associar um tema musical a personagens ou lugares específicos. Essa era a marca dos grandes compositores da Era de Ouro hollywoodiana, empregada com destreza por Max Steiner, Alfred Newman e Erich Wolfgang Korngold. No tocante aos personagens principais, Waxman monta dois leitmotifs bem característicos. Para Joe Gillis, Franz cria um jazz. À Norma Desmond um pastiche de tango, referenciando à eterna lembrança da dança com Rudolph Valentino, galã do cinema mudo e primeiro símbolo sexual de Hollywood. As associações são claras: o jazz é uma interpretação sonora da malandragem e urbanidade do personagem de William Holden, e o tango simboliza o hedonismo e a sensualidade (antiquada) de Norma Desmond.

É na manipulação desses temas que vemos outro recurso característico dos scores de Waxman – a paródia de temas ou estilos musicais consagrados para fins dramáticos. Além dos binômios Joe/jazz e Norma/tango Waxman refaz com delicadeza os clichês românticos dos westerns, quando Joe e Betty Schaeffer (Nancy Olson) passeiam ao luar num set da Paramount. Waxman repete esse estratagema na paródia que Norma faz do “Vagabundo” de Charles Chaplin, personagem-símbolo do cinema mudo. Para essa cena Waxman compõe um vaudeville desajeitado, repleto de notas erradas.

Uma influência óbvia na música de Crepúsculo dos Deuses é Strauss e Salomé. É de Strauss que Waxman toma emprestado a técnica do trinado, que é a alternância rápida entre uma nota base e outra, um tom ou um semitom acima. Waxman a emprega para demonstrar os picos de desvario mental de Norma Desmond. Isso fica evidente quando Norma e Joe estão assistindo um filme antigo dela (ironicamente Queen Kelly, o responsável por afundar as carreiras de Swanson e von Stroheim), e Norma de repente se levanta e declama que vai conquistar as telas de novo ("Produtores idiotas, imbecis! Será que não veêm? Já se esqueceram de como deve ser uma estrela?"). A música, acoplada à iluminação e à atuação de Gloria Swanson, faz dessa uma cena arrepiante. Para o temp track da cena da final, Billy Wilder usou a infame “Dance of the Seven Veils”. Na ópera é quando Salomé faz sua dança sedutora para Herodes, para fazê-lo entregar á ela a cabeça de João Batista numa bandeja. Wilder pediu pra Franz algo “igual ou melhor” para a cena.

Waxman também teve boas ideias em relação ao uso de música diagenética, a música que a plateia vê os personagens tocar. Quando Joe segue Norma no seu primeiro tour pela mansão, ouvimos de repente o sibilo polifônico de um órgão dilapidado, pegando poeira num canto da sala de estar. Esse chiado vem do vento que passa pelos tubos do velho órgão; é um som digno de casa mal-assombrada. Mais tarde, já instalado no quarto em cima da garagem, Joe acorda de um sonho ouvindo Max executar a “Toccata e Fuga em Ré Menor” do compositor barroco Johann Sebastian Bach (1685-1750). É a peça de órgão mais usada em filmes de terror. Antes de Crepúsculo dos Deuses ela apareceu sem os devidos créditos em O Médico e o Monstro (1931), seguido de duas adaptações dos contos de Edgar Allan Poe, O Gato Preto (1934) e O Corvo (1935). Ela é ouvida de novo, dessa vez "oficialmente", na versão Hammer Horror de O Fantasma da Ópera (1962). É o que o vilão está tocando no seu esconderijo subterrâneo, enquanto seu lacaio rapta a "mocinha" do filme, a cantora Christine Charles (Heather Sears).

É incrível como uma trilha sonora dessa importância teve de esperar meio século para ser lançada na íntegra. Apesar do seu Oscar (e Globo de Ouro), a trilha nunca esteve disponível no mercado antes de 2002. Até então, a única versão conhecida pelo público foi a de Andrew Lloyd Weber (1993), autor de Evita, Cats, O Fantasma da Ópera e outros musicais que marcaram a história da Broadway. Vamos agradecer a iniciativa de Joel McNeely e a Scottish National Orchestra, junto à gravadora Varèse Sabande, que resgataram esse clássico.

Quando Salomé estreou em Dresden no final de 1905 a platéia foi ao delírio, para espanto do seu criador. Richard Strauss não imaginava que sua ópera, cheia de inovações estilísticas e de final tão perturbador - o beijo necrófilo de Salomé no que restou de João Batista - fariam do compositor uma estrela do mundo operístico. De certa forma, Crepúsculo dos Deuses teve um destino semelhante. Assim como Strauss, Billy Wilder já era um auter reconhecido, mas Crepúsculo dos Deuses - assim como Salomé - elevaram-nos à uma nova condição de reconhecimento artístico.

Crepúsculo dos Deuses é uma obra cruel e ousada, porém fundamental para a história do cinema. Assim é a música do filme, também: perturbadora e inesquecível. Sunset Boulevard e Franz Waxman ficaram gravados na memória de incontáveis cinéfilos, um lugar onde o sol nunca se põe.

O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.

1 Comente Aqui! :

  • renatocinema disse...

    Billy Wilder era um gênio.

    Não importa se as consequências o fizeram não vencer o Oscar (prêmios são detalhes melhores sobre a importância de um filme) "Crepúsculo dos Deus é um retrato, como você mesmo rente a realidade.

    Se isso fez com que ele arrumasse alguns inimigos, fez, também que conquistasse diversos fãs. Entre eles eu.

    Palmas a Billy Wilder pela coragem e ousadia.

    O canalha Louis B. Mayer é que precisava de umas verdades a queima roupa.

    Congratulações pelo seu texto.

 
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