Crítica: Lendas da Paixão (trilha sonora)

19 de maio de 2011 2 Comente Aqui!

“Mais estranho que um filme sem música”, comenta Arthur Nestrovski no seu Notas Musicais (2000), “é uma trilha sonora sem filme”. E para ilustrar seu argumento ele cita a trilha de Lendas da Paixão (1994) como o exemplo de uma “música à procura de imagens, que a memória sozinha não é capaz de suprir”. Nestrovski admite que ela “cumpre sua função”, mas, no fim das contas, soa banal e utilitarista. Pior: para ele, a trilha de James Horner é kitsch – ou seja, exagerada, melodramática, superficial. E medíocre. É clara a ojeriza que esse escritor gaúcho tem pelo gênero. Apesar do desejo de dar uma “contra-patada” e defender essa trilha das palavras duras de Nestrovski, me vejo obrigado a antes apresentar meu público a nossa não-tão-pobre vítima.

Antes de musicar Titanic (1997) e Avatar (2009) – os dois maiores blockbusters da história – James Horner era conhecido como um compositor de filmes de fantasia e ficção científica. Ele assinou a partitura de Jornada nas Estrelas II – A Ira de Khan (1982), Krull (1983), Cocoon (1985), Aliens – O Resgate (1986) e Willow – Na Terra da Magia (1988), entre os de maior fama. Os ventos da mudança sopraram em Tempo de Glória (1989), filme que revelou Denzel Washington, ganhador do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante daquele ano. Dirigido por Edward Zwick, Tempo de Glória trata do primeiro regimento afro-americano a combater na Guerra da Secessão (1861-1865), e rendeu a James Horner seu segundo Grammy.

Horner voltou a trabalhar com o diretor em Lendas da Paixão, um épico hollywoodiano na tradição de Assim Caminha a Humanidade (1956). Encenado nas planícies trigueiras de Montana, a história gira em torno da família Ludlow. São eles o coronel William (Anthony Hopkins), patriarca do clã; Alfred (Aidan Quinn), o arquétipo do primogênito responsável; Tristan (Brad Pitt), o filho aventureiro; e o brilhante e idealista Samuel (Henry Thomas). O Coronel cria os filhos longe dos horrores da guerra, mas seus dias de tranqüilidade acabam com a chegada da noiva de Samuel, Susannah (Julia Ormond) e a iminência da 1º Guerra Mundial. Os filhos partem pra a Europa, começando uma saga transgeracional que vai da dita “Guerra Para Acabar Todas as Guerras” até o auge da Lei Seca. Sobram embates com a lei, tragédias familiares e corações partidos, mas o final é um de paz e reconciliação.

Edward Zwick comenta sobre o tom “sépia” da música de James Horner – para ele, ouví-la é como “folhear as páginas de um antigo álbum de família, à procura de suas raízes, de seus ancestrais”. Isso é certamente verdade para a música título (“Legends of the Fall”), um cue de ar misterioso que parece indicar as origens celtas da família (de fato, a origem do nome “Ludlow” é gaélica), com gaitas de fole e tudo. No mais Horner percorre, de forma correta, as demandas dramáticas formuladas pelo diretor. Cria temas expressivos nas cordas para as cenas de amor; aplica percussão para acelerar o pulso das cenas de ação; e retrata com majestade as pradarias de Montana, que vão do famoso Parque Yellowstone até as bordas do Canadá.

Lendas da Paixão emprega um recurso típico da linguagem sinfônica Horneriana – a shakuhachi, uma flauta de bambu japonesa. Sua sonoridade distinta é produzida pela sua riqueza timbrística e pela escala pentatônica menor, que soa misteriosa e sombria aos nossos ouvidos. James Horner praticamente introduziu a shakuhachi no cinema; ele a usava desde Willow (1988). Ela aparece em outras produções suas, a exemplo de Coração Valente (1995), A Máscara de Zorro (1998), Desaparecidas (2003), A Lenda do Zorro (2005) e o remake de Karatê Kid (2010). Em Lendas da Paixão ela enfatiza o lado selvagem de Tristan. Ela aparece na abertura (“Legends of the Fall”), como um presságio do drama que está por vir; reaparece na morte do irmão caçula (“Samuel’s Death”) e está onipresente no final (“Revenge”).

Lendas da Paixão leva vantagem sobre 90% da filmografia do compositor, pelo seguinte: ela evita, a) seu notório auto-plagiarismo, b) sua mania de “reciclar” melodias de compositores consagrados. De tempos em tempos essas acusações voltam, manchando o seu prestígio. (O que não parece afetar um dígito sequer de sua conta bancária, polpuda que só). Peguemos Avatar. Têm um tema de trompete desse filme que já foi reciclado três vezes – ele aparece em Tróia (2004), Círculo de Fogo (2001) e Willow. E tem um vídeo no Youtube pra provar isso. Titanic também está nessa: nela Horner reutiliza, com um arranjo recauchutado, um dos temas de Apollo 13 – Do Desastre ao Triunfo (1995). É um tema que na verdade nunca foi seu; foi roubado da Lista de Schindler (1993), de John Williams. (A prova.) Nem vou comentar os plágios criminosos feitos por ele com alguns renomados compositores do século XX – gente da estirpe de Aaron Copland, Carl Orff e Sergei Prokofiev. (Querem mais provas? Cliquem aqui.)

A recepção crítica de Lendas da Paixão têm sido consistentemente favorável desde seu lançamento – o disco é considerado por alguns a obra-prima de James Horner. Ele foi até indicado ao Globo de Ouro na época (perdeu para O Rei Leão, de Hans Zimmer). Inclusive a autoridade no Brasil sobre o assunto, o jornalista João Máximo, decretou que a música de Lendas da Paixão é “irretocável”.

Voltando ao nosso amigo Nestrovski. O problema da crítica que fez à Lendas da Paixão é cair num velho clichê dos detratores da arte: que a música de cinema só serve no cinema. Ele “esquece” que os temas de Guerra nas Estrelas, A Noviça Rebelde ou A Pantera Cor de Rosa estão tão incutidos na imaginação popular quando “Für Elise” (Beethoven), “Danúbio Azul” (Strauss) ou o “Bolero” (de Ravel). A resiliência dessas peças não é apenas produto da massificação mercadológica do maléfico império americano, como aquele típico eruditismo reacionário gostaria de acreditar. Argumentar isso não é só ser xiita – é ser surdo. A crítica “utilitarista” também cai por terra se lembrarmos do mecenato renascentista. Quantas obras-primas da humanidade foram encomendadas pela nascente burguesia, empunhando seu vil metal?

Foi dito que Edward Zwick é um diretor que pertence à uma era passada – aquela onde Hollywood era associada à produções épicas, filmes grandiosos explodindo de paixão e glória abarcando décadas inteiras. Independente de Zwick ser anacrônico (ou não), foi excelente a sua escolha por James Horner, dando a oportunidade para esse compositor fazer desse neo-épico americano uma de suas criações mais satisfatórias e duradouras.

O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.

2 Comente Aqui! :

  • renatocinema disse...

    Sendo bem sincero:

    Assisti ao filme anos atrás, na época de seu lançamento nos cinemas.

    Gostei do filme. Mas, a trilha sonora não me marcou muito não.

    Preciso rever para poder analisar a música na produção.

  • Zé Felipe Sá disse...

    Essa trilha também não me marcou na época, Renato! Faz pouco tempo que eu parei pra ouvir "Lendas de Paixão" com atenção; aí pude perceber que James Horner realmente caprichou nesse filme.

 
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