Crítica: The Doors (trilha sonora)

7 de abril de 2011 1 Comente Aqui!

Num tempo onde a música tinha o poder de transformar as pessoas, poucos artistas encarnaram a magia, a loucura e as contradições de uma geração quanto o The Doors.  Naqueles breves seis anos – dos primeiros ensaios, em Venice Beach até a morte prematura do vocalista Jim Morrison – os Doors tocaram fogo no mundo. Os ecos de sua revolução musical ainda chegam a nós; que o diga o documentário When You’re Strange, narrado por Johnny Depp, ganhador de um Grammy no ano passado; ou a fileira de músicos que prestam conta a eles – de Henry Rollins (Black Flag, Rollins Band) e Frank Black (Pixies), heróis do underground, aos multi-platinados Chester Bennington (Linkin Park) e Rob Thomas (Matchbox 20).

Quando o assunto é a banda, é difícil evitar que o foco não recaia sobre Jim Morrison. Um provocador profissional dotado de rara inteligência, Morrison absorveu com voracidade o neo-realismo italiano de Federico Fellini, o “Teatro da Crueldade” de Antonin Artaud, o período Nouvelle Vague do cinema francês – e livros e mais livros. Dos escritores beats devorou o romance/manifesto Pé na Estrada (1957), o dicionário do existencialista americano. Gostava da filosofia niilista de Friedrich Nietzsche; leu suas obras completas ainda na adolescência. Adorava Aldous Huxley e seu As portas da percepção (1954), onde o autor detalhava suas experiências com a mescalina e seu efeito liberador para a consciência humana. (A mescalina é o princípio ativo do peiote, cacto mexicano usado em experiências enteógenas). Foi o livro que deu nome à banda. O diferencial de Morrison foi aliar esse pensamento libertário ao uivo primal do blues, ancorados no seu famoso magnetismo animal.

Se essa combinação explosiva de rock ‘n’ roller e livre pensador transformaram Jim Morrison num sex symbol, o reverso da moeda não tardou em aparecer. Brincar de Dionísio tem seu preço. Seu estilo de vida autodestrutivo fragilizou não só sua saúde, mas acabou aniquilando seu espírito. Aos 27, Morrison se juntou à Janis Joplin e Jimi Hendrix (os “três Jotas”) no infame American Way of Death – morra e vire uma lenda.

Mesmo com uma história tão rica em tragédias e mitos, ela teve de enfrentar mil dificuldades para vir à tona. Para começar o guitarrista da banda, Robby Krieger, foi por muito tempo contra fazer um filme sobre o The Doors. Tinha certeza de “que ninguém faria justiça” ao seu legado. Os pais de Pamela Courson, o grande amor da vida de Jim, queriam que ela fosse retratada “como um anjo.” (Nunca o foi.) A “outra” de Morrison, a bruxa Patricia Kennealy, lançou uma maldição sobre quem tentasse filmá-la. Enfim, todos tinham um pedaço do bolo e ninguém queria dividir sua fatia sem ditar as regras. E agora, Joseph?

Robby Krieger finalmente mudou de idéia quando viu Salvador (1986), de Oliver Stone. Dessa visão sobre a ditadura panamenha e os guerrilheiros que a combatiam, Stone viveu seu período áureo, lançando os premiados Platoon (1986), Nascido em 4 de Julho (1989) e JFK – A Pergunta que Não Quer Calar (1991). Depois de terminar JFK, Stone realizou um velho sonho – dirigir um filme sobre o ídolo Jim Morrison. É uma admiração de longa data: seu primeiro roteiro, escrito quando terminou de servir na Guerra do Vietnã, era uma história surrealista com Morrison em meio às selvas da Indochina. Stone chegou a mostrar o roteiro para ele na época, e Morrison concordara em participar desse projeto.

Mesmo baseado em mais de 120 entrevistas e optando por pintar o Doors “com todas as cores”, o filme foi criticado por focar excessivamente o lado polêmico do quarteto. Vários momentos sensacionalistas na carreira da banda são retratados. De fato: Morrison sendo preso no palco em Atlanta, o casamento Wicca com Patricia Kennealy, o suposto atentado ao pudor no show de Miami, etc. A licença poética de Oliver Stone por diversas vezes extrapola a realidade: ele comprime várias pessoas numa só personagem ou injeta no filme situações dramáticas que nunca aconteceram. Krieger e John Densmore, baterista do Doors, tiveram suas reservas com as liberdades tomadas pelo diretor, mas enxergaram em The Doors uma obra de ficção e não uma versão factual de sua história. Ray Manzarek não. O tecladista ficou furioso. Alega que Oliver Stone o entrevistou, e mesmo assim preferiu entreter o público com sua versão “faz-de-conta”. Em resposta à visão “deturpada” do filme Manzarek lançou The Soft Parade (1991), uma retrospectiva mostrando o “Jim poeta” e o “Jim artista”, reduzido (segundo ele) a um beberrão babaca pelo diretor. As queixas de Manzarek fazem uma tremenda injustiça com Val Kilmer, excelente no seu desempenho como o Rei Lagarto.

Quanto à coletânea que acompanha o filme, os fãs sentirão falta de “Hello, I Love You”, “Touch Me”, “People Are Strange” e outras, presentes no filme e ausentes no álbum. Também pudera: ouvimos 40 trechos de músicas durante duas horas de filme, só um disco triplo para caber tanta coisa. Muita coisa boa ia acabar ficando de fora. De qualquer sorte a coletânea foi produzida pelo “quinto” Doors, Paul Rothchild, conferindo a ela pedigree. Rothchild também foi de grande ajuda no filme, orientando Oliver Stone e emprestando uma veracidade histórica sempre que possível.

The Doors começa apropriadamente com “The Movie”, retirada do disco póstumo An American Prayer (1978). No final de 1970, no dia do seu aniversário, Morrison pegou seus cadernos de poesia e, entre declamações e cantos a capela, gravou o equivalente a quatro horas de material. Morrison tinha a esperança de lançar um álbum com essas fitas, talvez acompanhadas por uma orquestra. Jim morreu e as masters ficaram encaixotadas por seis anos, até que Krieger teve a idéia de a banda fornecer um backing para esses poemas. Quando lançado o American Prayer foi bem recebido, sendo indicado ao Grammy, o primeiro álbum do Doors a receber tal honra.

A trajetória do The Doors se confunde com “Light My Fire”, e fica impossível tecer nem que seja um breve comentário sobre o eterno hit da banda. Num dos ensaios em Venice, Morrison propôs uma tarefa para os colegas: que cada um escrevesse uma música no fim de semana. O único a fazer o dever de casa foi Krieger, que compôs a primeira estrofe e o refrão de “Light My Fire.” Morrison adicionou uma segunda estrofe, Densmore um groove latino, e Ray e Robby se encarregaram dos solos. A música ainda faltava uma introdução, prontamente providenciada por Ray Manzarek e seus fraseados surrupiados de J. S. Bach. A escalada para o topo das paradas americanas foi lenta, mas quando lá chegou “Light My Fire” demorou três semanas para sair. Nada mal para a primeira música que Robby Krieger fez na vida.

Depois de “Light My Fire”, “The End” é a música mais conhecida do The Doors. Francis Ford Coppola, colega de Morrison na UCLA, a usou no seu épico Apocalipse Now (1979), nas cenas mais intensas do filme. “The End” encapsula a essência da banda: misticismo, poesia, sexo, tragédia... E morte. Começando com um lamento por um amor perdido, ela termina em incesto e parricídio. Um Édipo Rei encenado em plena Sunset Strip. Apesar das letras marcantes de Morrison, "The End" não seria nada sem o resto da banda. Robby Krieger pega sua Gibson SG vermelha e mostra seu treino de flamenco e o que aprendeu com Ravi Shankar, mestre da cítara e amigo de George Harrison. John Densmore lança rufadas nos tons que lembram tablas (instrumento de percussão indiano) e mantém a sessão rítmica com as levadas jazzísticas de um Art Blakey. Manzarek, com suas linhas semi-improvisadas de órgão, faz do clima espectral da música uma constante. Em The Doors é retratada uma cena antológica: lá pro final de "The End", no último show do Whisky, Morrison (fritando em alta no LSD) faz sua famosa encenação edípica ("Father? Yes, son? I want to kill you... Mother? I want to..."), para o choque de todos. Eles acabam expulsos pelo próprio dono do clube. Na saída, eles são abordados por Jac Holzman e Paul Rothchild, da Elektra Records, que oferecem um contrato.

Essa cena é uma de muitas incongruências históricas do filme. Jac Holzman ofereceu o contrato ao Doors antes daquele último show no Whisky – meses antes. Foi por causa desse contrato que eles resolveram chutar o balde com “The End”. Estavam mais preocupados em gravar discos do que continuar sendo a banda da casa. Apesar disso, dá pra entender o que Oliver Stone queria passar nessa cena. Sua versão, como recurso narrativo, acaba sendo mais interessante para a platéia...

Com o primeiro disco nas mãos e temporadas no London Fog e no Whisky A Go Go, os Doors estão prontos para conhecer a Costa Leste. A primeira parada foi o Big Apple. Lá conhecem a Factory e são apresentados a Andy Warhol, o papa da Pop Art. Assim como todos os participantes desse movimento, Warhol era fascinado com a cultura de massa e como seus produtos poderiam ser transformados em obras de arte. Era natural que Warhol fosse atraído por rock stars. Tanto assim que empresariou uma banda de rock, o Velvet Underground, um dos pilares do indie e da revolução punk. Na festa da Factory ouvem-se ao fundo duas canções Velvet: “Venus In Furs”, uma homenagem ao livro que deu origem à expressão “masoquismo” e “Heroin”, talvez a melhor canção já feita sobre a pior das drogas. Essa última está na trilha.

Nessa hora Oliver Stone "pisa na jaca" de novo e cria outra situação fictícia. A vocalista do Velvet na época, a modelo Nico, aparece como uma femme fatale prestes a comer Morrison vivo na frente de Pamela. Numa das cenas de Nova Iorque, Pamela inclusive flagra os dois fazendo sexo. De acordo com Mate-Me Por Favor, a história do punk segundo Legs McNeil, isso é pura invencionice. Um dos funcionários da Elektra entrevistados para o livro, Danny Fields, diz que o que Morrison basicamente fez foi ficar bêbado, puxar o cabelo de Nico e deixá-la soluçando no corredor do hotel, enquanto foi passear pelo parapeito.

No disco temos, logo a seguir, “Fortuna Imperatrix Mundi”, introdução de Carmina Burana. Originalmente uma coleção medieval de poesias profanas escritas por menestréis e monges errantes. Foi traduzida em forma de cantata pelo compositor Carl Orff. Desde o seu primeiro recital, no final da década de 1930, Carmina Burana se tornou uma das peças mais conhecidos do cânone erudito Ocidental. No cinema acabou virando um clichê: foi usada famosamente em 120 Dias de Sodoma (1975) de Pasolini, em Excalibur (1981), de John Boorman e até num episódio dos Simpsons. Anos atrás, Manzerek gravou sua própria versão (medonha) de Carmina Burana com Philip Glass, no mesmo ano em que o compositor lançou Koyaanisqatsi (1983), uma trilha de importância histórica.

Aí chegamos num ponto crucial da história da banda – o malfadado show de Miami, no primeiro de maio de 1969. Depois de tocarem “Five to One”, Morrison partiu para cima do público com violência, provocando-o, xingando-o. Ele estava cansado de ser enquadrado como símbolo sexual e passou a enxergar sua platéia como uma multidão fascista. Eles eram adoradores do poder, e estavam prontos para acatar qualquer ordem que o seu Führer (Morrison!) emitisse. Então, ele simulou se expor perante a platéia, e acabou acusado de ter mostrado o dito cujo para os respeitáveis cidadãos da Florida. Anos depois comprovou-se que era uma acusação fajuta e, quarenta anos depois do ocorrido, o estado da Flórida resolveu perdoar Jim Morrison. E de que adianta isso agora?

Foi nesse período que Morrison engordou, cresceu a barba e se mandou para a França a lá Ernest Hemingway. Já tinha se cansado da banda e o julgamento do caso Miami esgotou-o. “When the Music’s Over” relata o desfecho do seu julgamento, com a possibilidade de Jim parar na cadeia ainda pairando no ar. Fugiu para Paris para se reinventar, e lá recebeu a morte de braços abertos. A visita ao seu túmulo no Père-Lachaise, cemitério onde estão enterrados Oscar Wilde, Édith Piaf entre outros, é feita ao som de “Severed Garden”, adaptação Doorsiana do “Adágio em Sol Menor” do compositor barroco Tomaso Albinoni (1671–1751). Outra do American Prayer.

Apesar do final inevitavelmente triste, The Doors traz uma nota esperançosa. A última cena é a banda ensaiando “L.A. Woman” no estúdio, uma ode à relação de amor e ódio com sua cidade natal. Ela foi retirada do auto-produzido L.A. Woman (1971), o último disco da banda com Jim Morrison vivo. L.A. Woman é um ábum forte, consistente; uma volta às raízes, ao blues, ao rock de garagem, a um tempo em que a banda tocava despreocupada com as pressões da fama.

“Para mim, a pessoa deve ficar num estado de revolução constante ou então está morta.” Era essa a profissão de fé do velho Jim: viver no limite – sempre. E assim foi até seus últimos dias em Paris, onde se foi com um sorriso estampado no rosto. “O caminho do excesso conduz ao palácio da sabedoria”, já dizia o poeta William Blake. Quem sabe Jim Morrison tenha morrido mais sábio que todos nós.

O Cinema Detalhado não disponibiliza links pra download. Se quiserem ouvir a trilha, mandem uma mensagem pra mim que eu a envio via e-mail. Obrigado.

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